segunda-feira, 19 de junho de 2017

A história real por trás da crise econômica no Qatar





CartaMaior, 19/06/17



Sangue nas trilhas das Novas Rotas da Seda



Por Pepe Escobar 



"E antes que alguém pergunte, sim, o título é homenagem a Dylan.
Estamos todos enredados em... sangue*, não em nostalgia" (15/6/2017, Pepe Escobar, no Facebook).

O imperativo cardeal da política externa da China é não interferir em outros países, enquanto faz avançar as proverbiais boas relações com atores políticos chaves – ainda que estejam engalfinhados uns contra outros.

Seja como for, é de embrulhar o estômago de Pequim ter de assistir ao atual imprevisível impasse entre sauditas e qataris. Não há solução à vista, e cenários possíveis plausíveis incluem até mudança de regime e alteração geopolítica de proporções sísmicas no Sudoeste da Ásia – que visão ocidente-cêntrica chama de Oriente Médio.

E sangue nas trilhas no Sudoeste da Ásia só significa problemas ainda maiores à frente para as Novas Rotas da Sede, agora sob nova denominação de Iniciativa Cinturão e Estrada, ICE [ing. Belt and Road Initiative, BRI].

Quando disse oficialmente que "Decidi (...) que é chegada a hora de exigir que o Qatar pare de financiar [o terrorismo]", o presidente Trump apenas assumiu como seus os créditos pela excomunhão orquestrada de Doha, resultado daquela já famosa dança das espadas Riad.

O alto staff de Trump contudo continua a afirmar que o Qatar jamais participou de discussões com os sauditas. O secretário de Estado Rex Tillerson, ex-presidente da Exxon-Mobil e conhecido agente operativo no Oriente Médio, fez o que pôde para diluir o drama – sabendo que não haveria razão para que o Qatar continuasse a abrigar em seu território a Base Aérea Al Udeid e o Centcom, para potência hostil.

Entrementes, a Rússia – entidade maligna preferida dentro do governo dos EUA – vai-se aproximando mais e mais do Qatar, desde a aquisição, que tudo mudou no início de dezembro, pela Autoridade Qatari para Investimentos, AQI [ing. Qatar Investment Authority, QIA] de 19,5% da gigante coroada de energia, Rosneft.

Esse movimento traduz-se como uma aliança econômico/política entre os dois maiores exportadores de gás do planeta; e explica por que Doha – que oficialmente ainda tem gabinete permanente no quartel-general da OTAN – repentinamente jogou debaixo do ônibus (econômico) os seus "rebeldes moderados" na Síria.

Rússia e China são unidas numa parceria estratégica complexa, de vários vetores. Pequim, privilegiando interesses econômicos, assume visão pragmática e jamais se inclina na direção de desempenhar papel político. Como maior produtor e exportador de manufaturas, o lema de Pequim é absolutamente claro: Faça comércio, Não Faça guerra.

Mas e se o Sudoeste Asiático vir-se em futuro próximo atolado em perenes relações de pré-guerra por todos os lados?


Irã, o melhor amigo da China e da ICE

China é a principal parceira comercial do Qatar. Pequim estava negociando ativamente um acordo de livre comércio com o Conselho de Cooperação do Golfo (CCG), antes dos atuais desentendimentos. Mais alguns passos à frente, cenário possível é até que o Qatar saia do CCG.

O Qatar é também a segunda maior fonte de gás natural liquefeito (GNL) para a China, e a Arábia Saudita é a terceira maior fonte de petróleo para a China. Desde 2010 a China está à frente dos EUA como maior exportador para o Sudoeste da Ásia, ao mesmo tempo em que firma a própria posição como maior importador de energia do Sudoeste da Ásia.

Recentemente, quando o rei Salman visitou Pequim, a Casa de Saud pôs-se a falar, em êxtase, de uma "parceria estratégica sino-saudita" baseada nem contratos assinados no total de $65 bilhões. A parceria, na verdade, baseia-se num acordo de cooperação em segurança, de cinco anos, entre Arábia Saudita e China, que inclui exercícios conjuntos de contraterrorismo e militares. Muito terá a ver com manter livre de qualquer tumulto político o lucrativo corredor Mar Vermelho-Golfo de Áden.

Claro, haverá quem faça cara de desagrado porque o wahhabismo saudita é a matriz ideológica do jihadismo salafista que ameaça não só o Sudoeste da Ásia e o ocidente, mas também a própria China.

As Novas Rotas da Seda, hoje ICE, implicam papel chave para o CCG – num investimento mútuo, marca registrada do modo chinês de "ganha-ganha". Num mundo ideal, a "Visão 2030" dos sauditas, de modernização, que o príncipe guerreiro Mohammed Bin Salman (MBS) vende praticamente sem pausa para respirar, poderia, em teoria, até conquistar o interesse do jihadismo salafista do tipo Daech por todo o Sudoeste da Ásia.

O que o príncipe MBS, iranofóbico, parece não compreender é que Pequim realmente privilegia o seu relacionamento econômico baseado na Iniciativa Cinturão e Estrada, ICE, com Teerã.

No início do ano passado, quando o presidente Xi Jinping visitou Teerã, ele e o presidente Rouhani prometeram elevar o comércio bilateral China-Irã para colossais $600 bilhões em dez anos, praticamente todo o aumento relacionado à expansão da ICE.
China e Irã estão envolvidos em negócios sérios. Já há mais de um ano, trens de carga diretos entre China e Irã atravessam a Ásia Central em apenas 12 dias. E é só um aperitivo, antes da conexão completa por ferrovias de alta velocidade que cobrirão todo o arco da China à Turquia, via Irã, no início dos anos 2020s.

E em futuro distante (talvez nem tanto), uma Síria pacificada também será configurada como um dos nodos da Iniciativa Cinturão Estrada; antes da guerra, mercadores sírios eram figura de destaque no comércio de itens pequenos na Rota da Seda que vai do Levante a Yiwu na China ocidental.


ICE tem a ver com Turquia, Egito e Israel
 
A Rota Marítima da Seca chinesa nada tem a ver com algum "colar de pérolas" [de bases militares] ameaçador –, mas com infraestrutura de portos, construídos por empresas chinesas, que configuram pontos de parada chaves ao longo da ICE, do Oceano Índico via o Mar Vermelho e Suez até o porto grego de Pireus no Mediterrâneo. Pireus é propriedade da chinesa COSCO, que também opera o porto, desde agosto de 2016; esse moderno terminal de contêineres para comércio entre Leste e Oeste da Ásia já é o porto que cresce mais rapidamente em toda a Europa.

Por sua parte, o presidente Recep Tayyip Erdogan da Turquia já deixou bem claro que o interesse nacional da Turquia envolve o "Canal de Suez, mares adjacentes e dali até o Oceano Índico". Ao mesmo tempo em que Ancara instalou uma base no Qatar – agora há recebendo soldados –, também estabeleceu um Conselho de Cooperação Estratégica Turco-saudita.

Ancara pode estar-se engajando lenta e firmemente num 'pivô' em direção à Rússia –, no sinal verde para o Ramo Turco. Mesmo assim, também se pode falar de 'pivô' na direção da China – que também se deve desenvolver, percalços incluídos, em todas as áreas chaves, desde passar a ser membro do Banco Asiático de Investimento e Infraestrutura (BAII), até passar a integrar a Organização de Cooperação de Xangai (OCX).

Ambos os países, Turquia e Irã – também possível membro pleno da OCX para o próximo ano –, estão apoiando ativamente o Qatar no presente impasse, inclusive mediante embarques regulares de alimentos. Vê-se assim mais uma vez como Pequim simplesmente não se pode deixar arrastar politicamente para o que é, na essência, a intratável, viciosa guerra pelo poder regional entre Irã e sauditas. Mais uma vez, a Iniciativa Cinturão Estrada supera tudo.

O Egito implica problema extra. Está alinhado com Riad, no atual impasse: afinal, o marechal-de-campo presidente Al-Sisi depende da "prodigalidade" da Casa de Saud.

Mas a nova capital no Egito, do tamanho de Cingapura a leste do Cairo é essencialmente financiada por investimento chinês: $35 bilhões ao final do ano passado, e aumentando. Brindes extras incluem Pequim facilitar a troca de moedas – provendo um empurrão muito necessário na economia egípcia. Ahmed Darwish, presidente da Zona Econômica do Canal de Suez, só tem elogios para o principal investidor no Corredor do Canal de Suez, que é Pequim, por falar dela.

E há também a nascente Conexão Israelense-Chinesa. Israel apoia a guerra-relâmpago de sauditas-Emirados Árabes Unidos contra o Qatar como, essencialmente, mais uma frente de guerra 'à distância' contra o Irã.

China está apostando em construir a ferrovia para trens de alta velocidade que ligará os mares Vermelho e Mediterrâneo. Se o proverbial oceano de contêineres puder ser acomodado perto de Eilat, os chineses poderão transferir a carga pela ferrovia Vermelho-Mediterrâneo até o Corredor do Canal de Suez, do qual os chineses já tomaram conta.
 
Construir a conectividade é ação frenética em todas as frentes. O Grupo Porto Internacional de Xangai [ing. Shanghai International Port Group] já controla o porto de Haifa. A China Engenharia de Portos [ing. China Harbor Engineering] construirá um novo porto de $876 milhões em Ashdod. Israel já é a principal fornecedora de tecnologia agrícola para a China – por exemplo, para dessalinização de água, aquicultura e criação de gado, por exemplo. Pequim quer importar de Israel mais tecnologia biomédica, de energia limpa e de telecomunicações. Suspense nessa relação é a iminente integração de Israel também como membro do BAII.

Não é exagero dizer que, doravante, tudo que aconteça no Sudoeste da Ásia será condicionado por e inter-relacionado à super rodovia-empório terra-mar da ICE, do Leste e Sudeste da Ásia até o sudeste da Europa.

Focada no movimento amplo da ICE na direção da multipolarização, da globalização 2.0 "inclusiva" e na rápida disseminação da tecnologia da informação, a última coisa de que Pequim precisaria seria qualquer retrocesso forçado: algum impasse fabricado, enlouquecido, como o novo front de guerra existencial à distância entre a Casa de Saud e o Irã, e com Arábia Saudita, Emirados Árabes Unidos e Israel engalfinhados contra Qatar, Turquia, Irã – e Rússia.

Não há dúvidas de que a insônia tem atormentado as noites no Zhongnanhai.** ***

* Blood on the Tracks [Sangue nas trilhas] é álbum de Bob Dylan, de 1975. Abre com a faixa Tangled Up in Blue [aprox. "Enredado em nostalgia/saudade"]. Pepe Escobar dá belo uso à semelhança (mais 'gráfica' que fonética) entre blue /blu/ e blood /bl%u08Cd/ (NTs).

** Zhongnanhai é um complexo de edifícios em Pequim, a oeste da Cidade Proibida, onde estão instalados o Diretório Central do Partido Comunista da China e a sede oficial do governo da República Popular da China [NTs com informações de Wikipedia].





Carta Maior, 19/06/17


A história real por trás da crise econômica no Qatar



Por Robert Fisk, The Independent



A crise no Qatar prova duas coisas: a infantilização continuada dos estados árabes e o total colapso da unidade dos muçulmanos sunitas, unidade que teria sido supostamente criada pela participação absurda de Donald Trump na conferência de cúpula dos sauditas, há duas semanas.

Depois de prometer lutar até a morte contra o “terror” xiita iraniano, a Arábia Saudita e parceiros mais íntimos agora se mobilizaram para combater um de seus vizinhos mais ricos, o Qatar, que seria a cabeça do “terror”. Só em peças de Shakespeare se vê traição de tais proporções. Nas comédias de Shakespeare, claro.

Porque, na verdade, há algo de inacreditavelmente delirante nessa charada. Claro que cidadãos do Qatar com certeza contribuíram para o ISIS. Mas, isso, cidadãos da Arábia Saudita também fizeram.
 

Nenhum qatari disparou aviões dia 11/9 contra New York e Washington. Mas todos os 19 assassinos eram sauditas. Bin Laden não era qatari. Era saudita.

Mas Bin Laden dava preferência ao canal al-Jazeera do Qatar, para divulgar suas falas pessoais, e foi o canal al-Jazeera quem tentou dar novo ânimo aos desesperados da al-Qaeda/Jabhat al-Nusrah na Síria, garantindo ao líder deles horas e horas de transmissão gratuita para explicar que, sim, eram grupo muitíssimo moderado, dedicado amante da paz.

Primeiro, tiremos da frente as partes histericamente cômicas dessa história. Vejo que o Iêmen estaria rompendo suas conexões aéreas com o Qatar. A notícia deve ter sido um choque para o pobre emir do Qatar, Xeique Tamim bin Hamad al-Thani, porque o Iêmen – sob bombardeio ininterrupto pelos ex-amigos sauditas e dos Emirados –, já não tem sequer um avião aproveitável com o qual criar, imaginem romper, conexões aéreas.

As Maldivas também romperam relações com o Qatar. Pelo sim, pelo não, o rompimento nada tem a ver com o empréstimo que sauditas acabam de prometer às Maldivas, por cinco anos, de $300m; nem com a proposta, de uma imobiliária saudita, de investir $100m na construção de um resort familiar nas Maldivas; nem com a promessa, feita por clérigos islamistas sauditas, de aplicar $100,000 em 10 mesquitas “de classe internacional” nas Maldivas.

E isso para nem falar do grande número de crentes fervorosos do ISIS e de outros cultos islamistas, que chegam ao Iraque e Síria para lutar contra o ISIS vindos – ora essa! Das Maldivas.

Agora que o emir do Qatar está sem soldados suficientes para defender o próprio pequeno país, os sauditas resolvem que ele teria de solicitar que os exércitos sauditas invadam o Qatar para restaurar a estabilidade – como os sauditas em 2011 persuadiram o rei do Bahrain a fazer. Mas o Xeique Tamim sem dúvida espera que a gigantesca base aérea militar dos EUA no Qatar seja suficiente para conter a generosidade saudita.

Quando perguntei ao pai de Tamin, Xeique Hamad (que adiante foi impiedosamente derrubado do poder por Tamin) por que não despachara os norte-americanos para bem longe do Qatar, ele respondeu: “Porque, se tivesse despachado, meus irmãos árabes me invadiriam.

Tal pai, tal filho, acho eu. God Bless America.

Tudo começou – conforme querem que acreditemos – com um suposto ataque de hackers contra a Agência Qatar News, que expôs alguns comentários pouco elogiosos, mas incomodamente corretos, do emir do Qatar sobre a necessidade de manter um relacionamento com o Irã.

O Qatar negou a veracidade da história. Os sauditas resolveram que era tudo verdade e divulgaram aqueles conteúdos pela própria (e mortalmente entediante) rede de televisão estatal. O supracitado emir, essa era a mensagem, fora longe demais daquela vez. Os sauditas, não o minúsculo Qatar, mandam no Golfo. E a visita de Donald Trump não comprovou precisamente isso?!

Mas os sauditas têm outros problemas com os quais se preocupar. O Kuwait, longe de romper relações com o Qatar, faz agora as vezes de pacificador entre Qatar e sauditas e Emirados. O Emirado de Dubai é muito próximo do Irã, recebeu dezenas de milhares de expatriados iranianos e absolutamente não segue o exemplo de ira anti-Qatar que vem de Abu Dhabi.

Há poucos meses, Omã estava até fazendo manobras navais conjuntas com o Irã. O Paquistão há tempos declinou o convite para mandar seus exércitos ajudar os sauditas no Iêmen, porque os sauditas requereram só soldados sunitas, não soldados xiitas; o exército paquistanês sentiu-se muito compreensivelmente ultrajado ao se dar conta de que a Arábia Saudita já obrava para sectarizar até o corpo militar paquistanês.

Há boatos de que o ex-comandante do Exército do Paquistão, general Raheel Sharif, estaria a ponto de se demitir da presidência da aliança muçulmana patrocinada pelos sauditas para combater o “terror”.

O presidente marechal de campo al-Sissi do Egito andou chiando contra o Qatar por apoiar a Fraternidade Muçulmana no Egito – e o Qatar, sim, apoia mesmo o grupo agora banido, que Sissi diz, erradamente, que seria parte do ISIS – mas o Egito, embora receba milhões dos sauditas, tampouco tem intenção de mandar soldados seus para ajudar os sauditas naquela guerra catastrófica que fazem contra o Iêmen.

Além disso, Sissi precisa de seus soldados egípcios para expulsar o ISIS e manter, mancomunado com Israel, o sítio contra a Faixa de Gaza palestina.

Mas, se se olha um pouco adiante pela estrada, não é difícil ver o que realmente preocupa os sauditas. O Qatar também mantém silenciosos laços com o regime de Assad; ajudou a libertar com segurança as freiras cristãs sírias sequestradas pela [frente] Jabhat al-Nusrah; e ajudou a libertar soldados libaneses sequestrados pelo ISIS no oeste da Síria. Quando as freiras deixaram o cativeiro, agradeceram a ambos, a Bashar al-Assad e ao Qatar.

E há suspeitas crescentes no Golfo de que o Qatar tem ambições muito maiores: financiar a reconstrução da Síria pós-guerra. Mesmo se Assad permanecer como presidente, a dívida síria poria a nação sob controle econômico do Qatar.

Isso, sim, daria ao minúsculo Qatar duas taças de ouro. Dar-lhe-ia um império territorial que faria dupla com o império midiático al-Jazeera. E estenderia a prodigalidade aos territórios sírios, os quais muitas empresas de petróleo gostariam de usar como rota de oleodutos do Golfo à Europa via Turquia, ou via navios-tanques petroleiros, do porto sírio de Lattakia.

Para os europeus, essa rota reduz as chances de serem chantageados pelo petróleo russo, e cria vias marítimas para o petróleo, menos vulneráveis se os navios-tanque não tiverem de cruzar o Golfo de Hormuz.

É ganho muito considerável para o Qatar – ou para a Arábia Saudita, claro, se o que se diz sobre os EUA controlarem os dois emires, Hamad e Tamim, não se confirmar. Uma força militar saudita no Qatar permitiria a Riad mamar todo o gás líquido que há no emirado.

Mas evidentemente os sauditas “antiterror” e amantes da paz – deixemos de lado por um instante as degolas – jamais desejariam a um irmão árabe destino tão desgraçado.

Assim sendo, esperemos que, pelo menos por enquanto, as linhas aéreas da Qatar Airways sejam a única parte esquartejada do corpo político qatari.


 * Traduzido por Vila Vudu

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