sábado, 13 de maio de 2017

A esfinge midiática que devorou o juiz Sérgio Moro






Justificando, 12 de maio de 2017



A esfinge midiática que devorou o juiz Sérgio Moro



Por Yuri Carajelescov



O depoimento prestado pelo ex-presidente Lula ao juiz Sérgio Moro trouxe à tona um debate propositalmente adormecido acerca da relação entre a mídia e o exercício do poder punitivo estatal. Lula lembrou que Moro defendeu em artigo doutrinário sobre a operação “mãos limpas” (mani pulite) que a imprensa deve ser politicamente instrumentalizada pela justiça para atingir seus objetivos persecutórios, sem o qual seria impossível combater a criminalidade organizada.

A performance dos atores jurídicos envolvidos na operação Lava Jato, o clímax e anticlímax de um enredo novelesco, os sobressaltos e as reviravoltas transmitidos em tempo real pelas tevês a reter a atenção de um público ávido por justiça a qualquer preço, ou algo assim, indica que a teoria defendida pelo magistrado pode ter encontrado alguma correspondência na prática. É preciso, no entanto, investigar o impacto dessa relação em um sistema que sustenta proteger direitos e garantias fundamentais, além da natureza, extensão e morfologia dessa relação para se saber quem efetivamente é meio e quem é comando

Na sociedade de massa e da informação convém ter presente que a mídia atua como árbitro do acesso à existência social e política, validando determinadas posições e desqualificando outras, em larga medida fornecendo “a imagem do mundo ao homem comum” (BERTRAND). 

Organizada em conglomerados empresariais (e familiares no caso brasileiro), seu objetivo central é a manutenção da estrutura dos processos de acumulação capitalista por meio da divisão social do trabalho. Logo, a mídia não se apresenta como um elemento imparcial nesse processo de apuração de condutas e imputações, como deveria ser o órgão estatal de solução de conflitos, já que apoiar ou rechaçar determinados agentes políticos obedece a uma lógica diversa da que deveria nortear a ação estatal fundada na noção do bem comum.

Por mais que se queira, instrumentalizar essa poderosa máquina construtora do aparato simbólico para atingir determinadas finalidades não parece ser algo trivial. Atiçar a fera é bulir com o imponderável, pois o único comando que o mastodonte obedece é o que atende ao escopo de sua existência, ou seja, a manutenção do status quo e do ecossistema que alimenta o seu poder.

Moro que de bobo não tem nada já se deu conta disso, prisioneiro que de bom grado se tornou desse enredo. Se pretendia tosquiar com a doutrina colada dos italianos da mani pulite, certo é que voltou tosquiado pela força dos fatos, jamais se opondo aos termos do acordo.

Em um mundo de imagens e de reality show, muitas vezes a fama e o reconhecimento social são mais importantes que a riqueza material. E no fim das contas, posar de herói é sempre melhor do que de vilão, mesmo que a contrapartida envolva o despojar-se do munus de julgador e a auto-conversão em operador autômato de discursos preestabelecidos segundo interesses hegemônicos.

Entabula-se, então, uma relação real e distante da idealizada inicialmente entre juiz e mídia. Esta lhe concede o efeito celebridade e uma popularidade efêmera. Aquele o ajuste de contas com os desviantes, os inimigos públicos selecionados pelos meios de comunicação, tudo sob a chancela do poder estatal que deveria ser imparcial e tributário do devido processo legal, o qual, assim como os demais direitos e garantias fundamentais, serve apenas como referência retórica.

No fundo, trata-se de uma privatização ad hoc da função jurisdicional. Os julgamentos não são apenas na, mas, sobretudo pela mídia. O juiz que parece todo poderoso, na verdade, é fraco e impotente, teleguiado por interesses que pouco tem a ver com as coisas da justiça assentada em um sistema de normas escalonadas preestabelecidas.

Ao final de seu depoimento, Lula disse que se Moro não o condenasse seria devorado por aqueles que hoje o apoiam. Ao fazê-lo, o ex-presidente expôs as vísceras de um sistema carcomido que nada tem a ver com a Justiça, exceto o mise en scène. De toda aquela pantomima, o que se viu ao final foi um juiz guarnecido por tropas, holofotes e microfones, mas acuado pelos valores elementares da civilização.


*Mestre e doutor em Direito pela USP.






Justificando, 11/05/17



Acordem, juristas!



Por Roberto Tardelli



Acordem. Amigos Policiais, Promotores, Procuradores, Juízes, Desembargadores. Acordem. Em nome de uma obsessão, vocês estão destruindo o sistema processual penal, já tão combalido, do Brasil. Acordem, antes que seja tarde demais, antes que vocês tenham a pagar um preço histórico que poderá ser irresgatável. Amigos e Amigas que ainda tenho nessas instituições, pensem, ponderem, reflitam, ainda há tempo, eu lhes peço.

Ontem, o Brasil assistiu a um espetáculo deprimente. Uma população perplexa teve a visão do pior da Justiça Criminal: ela é feita para perseguir pessoas, ela se presta e admite impor juízos de valor negativos, ela não parece conhecer limites éticos, ela não necessita de um crime, mas de alguém para ser culpado, alguém para ter sua cabeça, feito Tiradentes, colocada em poste de ignomínia. A Justiça Criminal, aos olhos da pessoa comum, de quem se aperta no trem, no ônibus, na rua, de quem vira a madrugada esperando uma vaga em creche, que vagueia pela noite em busca de um posto de saúde, que treme de medo quando vê a viatura da polícia dobrar a esquina, para esses, a Justiça Criminal é terrível, opressora e profundamente eletiva.

Amigos, acordem. Nunca condenamos tanto por tão baixa qualidade de prova, nunca nos percebemos que viria o dia em que a culpa seria a presunção verdadeira, restando à inocência a presunção rejeitada. Acordem, há milhares de pessoas presas sem culpa alguma do que lhes acusaram.

Uma obsessão pela prisão de um único homem os tornou cegos, o único, que, depois de Zumbi, saiu das classes populares e reinou e cometeu acertos e erros. Essa obsessão está fazendo tudo ruir, creiam.

É de sair aos gritos pela rua ver pessoas que se mataram para aprovação em concursos que exigem a vida, a juventude, que fazem sacrificar amores, casamentos, sonhos, ideais, que demandam anos de estudos e de estudos muitas vezes do inútil e do desnecessário, entregarem-se a uma fantasia, a um delírio coletivo, que os faz incorporar valores e os fazem adquirir ódios que jamais tiveram, mas que se voltam contra o comum das gentes, os pequenos criminosos, os viciados, os ladrões, as mulheres caídas, todos destinatários de ódio depurador, que ninguém consegue mais saber onde se adquiriu, acabado e sem possibilidade de enfrentamento, porque é monolítico, irremomível.

Por um momento, quebrem a corrente perversa que os fez acreditar que vivemos uma guerra contra o crime. Não há guerra alguma, creiam. Essa guerra só matou miseráveis, adolescentes, os indefesos; faz criar monstros urbanos imaginários, torna inimigo quem teria que ser tratado como irmão. O que nos faz existir é a compaixão pela dor da vítima e o respeito pela dor do réu. Não há gozo no crime, mas sofrimentos de todos os lados.

Aos que me detestarem, aos que estiverem fartos de mim, esqueçam que sou eu a falar, mas apenas, ainda que solitariamente, ainda que ninguém precise perceber, ainda que em algum momento de solidão, de encontro com os espelhos da alma, reflitam, procurem, de alguma forma, recordar em que momento perdeu-se o passo e se deu troncos aos frutos da intolerância tão radical, desse positivismo raso e sectário. Deve haver, sempre há, um retorno, uma forma de sair desse túnel sinistro e escuro em que nos metemos, levados pela obsessão que não deveria ser nossa e nem deveria existir.

Acordem. Despertem dessa catarse. Tomem de volta a compaixão e o respeito à dignidade humana, abominem a superlotação carcerária, soltem esses milhares de jovens, quase homens e quase mulheres, tornados adultos por nossa incompreensão. Abram as janelas da mente e as portas das prisões; juro que nada acontecerá e que nenhum índice de criminalidade será elevado. Vocês são os únicos que podem fazê-lo, apenas vocês, amigos, podem nos livrar da sensação do estupro que vêm com as revistas vexatórias, só vocês podem quebrar essa dependência cega da verdade absoluta, somente aceita de um dos lados desse artificial confronto policial das ruas. Parem as máquinas da Indústria do Medo, está nas mãos de vocês. Somente vocês podem nos livrar da glorificação dos canalhas delatores, esses que entram no processo pela porta dos fundos, para salvar a própria pele camaleônica e nada mais.

Acordem, antes que vocês sejam tragados, antes que as matilhas punitivistas comecem a sentir cheiro de sangue perto de vocês, antes que seja tarde demais.

Acordem. Ainda resta tempo, cada dia mais escasso.

Um forte abraço desse amigo,


*Advogado Sócio da Banca Tardelli, Giacon e Conway. Procurador de Justiça do MPSP Aposentado.








Jornal GGN, 13/05/17



A morte do Estado de direito e o fortalecimento do Estado penal


Por Gustavo Roberto Costa



10 de maio de 2017: o dia da vergonha. O dia em que o processo penal do espetáculo (nos dizeres de Rubens Casara) atingiu seu ponto máximo. Foi a demonstração de que o uso e a destruição da imagem de um ser humano (presumidamente inocente), para o deleite de uma plateia enfurecida pela desinformação generalizada espalhada diariamente pela grande mídia – movida unicamente por seus interesses empresariais –, em manifesta contrariedade ao que dispõe o art. 221, I, da Constituição Federal ¹, não encontram limites.

Nos últimos dias, os veículos de comunicação têm dispensado quase que 24 horas diárias de sua programação para divulgar o conteúdo de delações (que nem provas são) que supostamente incriminariam o principal réu da famosa ação penal. As informações e opiniões recorrentes dos grandes conglomerados midiáticos são todas no sentido da culpa inequívoca do acusado. Para eles, a condenação é questão de tempo. Não importam as provas, não importam os direitos ao contraditório e à ampla defesa; nada disso importa.

É nítida a intensão da mídia em manter a atenção da dita “opinião pública” (como se menos de dez famílias donas das maiores empresas de comunicação pudessem representá-la) nesse caso, pois, assim, tira-se o foco da destruição – a todo vapor – dos direitos sociais e trabalhistas levada a efeito pelo governo ilegítimo que se apossou do poder. Manter a população anestesiada, acreditando que a questão mais importante para o país é a acusação contra Lula é conveniente, para que os retrocessos intentados pelos atuais poderes da república (com iniciais minúsculas mesmo) não sejam percebidos pelos mais prejudicados.

Voltemos à operação. 

Costumeiramente, operação é um nome dado a atividades policiais. Segundo nosso ordenamento jurídico, Polícia, Ministério Público e Judiciário cumprem papéis diversos na persecução penal. Se essas três estâncias agem conjuntamente, o Estado de Direito é enfraquecido. Se todos estão engajados em comprovar teses acusatórias, não há fiscalização mútua, própria de toda atividade estatal. Bem por isso, o Sub-Procurador Geral da República Eugênio Aragão defende a tese de que forças-tarefas como essa são inconstitucionais. E parece que tem razão.

O caso Lula, para uma análise séria e imparcial das práticas ilegais que passaram a ser adotadas no país, é emblemático. Outras hipóteses de arbítrio também poderiam ser citadas, como o da condução coercitiva de um jornalista para que divulgasse suas fontes (cujo sigilo é garantido constitucionalmente) ou o do empresário que ficou preso mais de seis meses preventivamente – perdendo emprego, casamento e convivência com a filha recém-nascida – para depois ser absolvido pelo Tribunal Regional Federal (apesar de isso acontecer cotidianamente com os clientes preferidos do sistema de justiça criminal) e tantos outros.

Mas para Lula, negou-se a existência do Estado de Direito. Negou-se a ele – e a sua família – a condição de cidadão, o que é gravíssimo.

A divulgação para a imprensa de conversas telefônicas – que nenhuma importância tinham para o processo –, entre o réu e a Presidente da República, entre ele e seu advogado e até mesmo entre sua esposa e um filho, foi uma das primeiras amostras do que estava por vir. Se dúvidas ainda há sobre a ilegalidade de tais providências, uma rápida leitura dos artigos 8º, 9º e 10 da Lei n. 9.296/96 espanca qualquer dúvida. O artigo 8º diz que deve ser preservado o sigilo das diligências, gravações e transcrições da interceptação, o artigo 9º estabelece que a gravação que não interessar à prova será inutilizada, e o artigo 10 prevê como crime quebrar segredo de Justiça de interceptações telefônicas, cominando pena de 2 a 4 anos de reclusão. Desnecessário recordar a opinião do falecido ministro Teori Zavascki sobre isso.

O espetáculo da condução coercitiva do acusado, sem que tivesse sido intimado anteriormente para depor, é outra demonstração do afastamento das regras processuais no feito criminal em comento. A condução coercitiva é permitida somente para o “ofendido” (art. 201, § 1º, do CPP) ou se, “regularmente intimada, a testemunha deixar de comparecer sem motivo justificado” (art. 218 do CPP). Não há margem para interpretação. Nada, rigorosamente nada, existe no ordenamento jurídico pátrio que permita uma condução coercitiva como as que vêm sendo realizadas. Se agentes públicos podem violar as leis, por que os investigados e acusados não podem?

Tantas arbitrariedades fizeram com que o réu perdesse sua esposa de forma triste. Graças à fúria persecutória que não enxerga seres humanos a sua frente, os últimos dias dela foram dos mais infelizes. É uma pequena amostra do que o Estado Penal (na expressão de Loic Wacquant) pode causar aos selecionados como inimigos.

Com relação aos abusos cometidos pela autointitulada “operação”, é importante lembrar da opinião de juristas do quilate de Celso Antonio Bandeira de Mello (Professor titular de direito administrativo da PUC-SP), para quem ela “está sendo conduzida com violação aos princípios fundamentais do Estado de Direito”²; de Fábio Konder Comparato (Professor Emérito da Faculdade de Direito da USP), que a conceitua como um “acúmulo de ilegalidades”³; e até mesmo para o grande jurista italiano Luigi Ferrajoli, que disse, no Parlamento italiano, que a operação lava-jato não busca a verdade, mas sim “o consenso da opinião pública” (além de dizer que o processo de impeachment contra Dilma Rousseff foi “insensato e infundado”4).

Os direitos e garantias fundamentais devem estar à disposição de todos, inclusive de nossos adversários e inimigos (Lênio Streck 5). Enquanto não enxergarmos o outro como uma extensão de nós mesmos, a tendência é afundarmos cada vez mais no voluntarismo daqueles que se julgam ungidos por uma força superior para salvar o país, mas, não obstante, nos estão levando para o fundo do poço.
Calar ante essa tragédia, e consequentemente compactuar com ela, é intolerável.


*Promotor de Justiça em São Paulo. Membro fundador do Coletivo por um Ministério Público Transformador e membro do Movimento LEAP-Brasil – Agentes da Lei contra a Proibição.


1 Art. 221. A produção e a programação das emissoras de rádio e televisão atenderão aos seguintes princípios:

I - preferência a finalidades educativas, artísticas, culturais e informativas;




5 http://www.conjur.com.br/2017-mai-08/streck-clamor-ruas-ou-constituicao-casos-dirceu-palocci-bruno

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