sábado, 14 de janeiro de 2017

O mistério depois da colina – ode a Yves Lacoste






Jornal GGN, 14/01/17




O mistério depois da colina – ode a Yves Lacoste



Por Daniel Afonso da Silva



                                  Yves Lacoste


Paris, França. Outono de 1976. O conflito leste-oeste seguia intenso. O mundo soviético e o mundo livre conduziam a atenção e o destino dos povos. O choque do petróleo dos anos anteriores punha fim aos tempos gloriosos. O racionamento econômico impunha contingências. A geração nascida após as guerras totais começava a viver em hesitação permanente. Os espetáculos de maio de 1968 ainda se faziam sentir. Seus efeitos positivos e nefastos iam revirando as entranhas da sociedade. O general De Gaulle (1890-1970) e seu sucessor, Georges Pompidou (1911-1974), passavam à História. 

O presidente Valery Giscard d'Estaing, por seu turno, fazia o que podia para guardar algum protagonismo francês naquele mundo de brutos. A morte de Franco na Espanha e de Mao na China, como o desaparecimento do regime de Salazar em Portugal, conduziam indícios de mudanças de importância. Da África, às Américas, ao Oriente médio tudo ganhava novos respiros, novos contornos, novos sentidos mesclados em intensa e complicada aceleração. Os pretensos sistemas de compreensão desses eventos seguiam, como de costume, frágeis, nefandos e anacrônicos. O cultivo da memória travestida em História lançava o presente ao cultivo do imperativo jornalístico. Atividades científicas concernentes à ação humana grassavam em demérito progressivo quanto mais se distanciassem do passado.

O passado como acesso à longue durée admitia pouca ou nenhuma transgressão. A Geografia, por essa e outras razões, vivia momentos de agonia e crise enquanto a História, embalada pelo sucesso de nouveaux problèmes, nouvelles approches e nouveaux objets da Escola dos Annales renovada da geração de Jacques Le Goff e Pierre Nora, conhecia imenso regozijo. A resposta das mais contundentes e permanentes a esse afã de memento mori do saber geográfico e da Geografia veio com a aparição do controverso ‘La Géographie, ça sert, d'bord, à faire la guerre’ de Yves Lacoste.

Polêmico, contestado e sacralizado na França, esse pequeno livro, desse já bastante conhecido geógrafo à época, ganhou o mundo e encantou os mais diversos públicos em todas as direções cardeais. No Brasil, sua absorção foi, seguro, imediata e ainda segue referência aos amantes de mundos e destinos, espaços e fronteiras, cartas e territórios. 

Entretanto, por dispersa e insondável motivação, ‘La Géographie, ça sert, d'bord, à faire la guerre’, de responsabilidade das engajadas Éditions Maspero, de François Maspero – o mesmo que publicara anos antes ‘Pau de arara, La violence militaire au Brésil’, instrumento de denúncia da brutalidade da ditadura brasileira – jamais possuiu reedição. Sua travessia do deserto, mesmo que menções e edições ao estrangeiro tenham seguido constantes desde sua aparição, durou quase dois quartos de século. Trinta e seis anos depois, em 2012, Yves Lacoste, agora detentor do Vautrin Lud – o mesmo que esse brasileiro, baiano, de Brotas, saudoso Milton de Almeida Santos (1926-2001), recebera em 1994 no Festival Internacional de Geografia de Saint-Dié-des-Vosges – volta ao texto. Desse empenho resulta essa nova edição, aumentada e comentada, de La Géographie, ça sert, d'bord, à faire la guerre, que em muito merece ser relido, sobretudo por não-geógrafos.

Saída por La découverte de François Gèze, essa nova edição ganha um imenso prefácio de Yves Lacoste e elucidativos comentários críticos e autocríticos sobre possíveis atualidades dos argumentos expressos em cada um dos seus dezessete curtos e longos capítulos.

A gestação original do livro se confunde, por evidência, com a biografia do autor que, por sua vez, está ligada à renovação do saber geográfico e da Geografia, na França e algures, nestes últimos quase cinquenta anos. Nascido em 1929, no hospital militar de Fès, no Marrocos, Yves Lacoste – que segue vivo e atuante nesses nossos idos do século 21 – teve como primeira e permanente paixão a Geologia, ofício de seu pai, Jean Lacoste, geólogo da confraria francesa de estudos e exploração de petróleo no protetorado marroquino.

Em 1938, a família Lacoste se obriga a retornar à metrópole. Jean Lacoste, enfermo, necessita de acompanhamento sanatorial. A partir de 1941, Yves Lacoste, com seus outros dois irmãos, conhece a orfandade paterna. A morte de seu pai coincide com seu ingresso no liceu francês. Nesses primeiros estudos, seu desempenho fora, por assim dizer, razoável. Nada de apreço por Matemática. Algum pouco interesse por História. Nenhum grande entusiasmo pela Geografia. Mesmo assim, sua ligação à Geologia lhe aproxima de Pierre George, seu professor no secundário.

Passada essa fase, Lacoste acessa o Instituto de Geografia da rue Saint-Jacques. Aí conhece e adere ao Partido Comunista Francês, do qual Pierre George e muitos de seus professores faziam parte. Aí também conhece e se apaixona por Camille Dujardin, com quem se casaria anos depois, e continua seu amor da vida toda.

Licenciado em Geografia, segue ao Marrocos para completar seus estudos. De volta à Paris e portador de um diploma de estudos superiores, consegue nomeação ao cargo de professor secundário na Argélia. As experiências em Argel o marcariam profundamente. Primeiro por tomar contato com a convulsão dos movimentos de independência norte-africanos. Segundo por adentrar a obra de Ibn Khaldoun – exímio historiador maghrebino do século 14 – que resultaria em seu Ibn Khaldoun, naissance de l'Histoire, passé du tiers monde’, de 1965.

A tensão política em Argel lhe impõe voltar à França. Em Paris vira assistente de Pierre George no Instituto de Geografia. Mesmo assim, mantém relações fraternais e políticas intensas com o Maghreb. Desse envolvimento ganharia luz sua Histoire du Maghreb’, de 1957. Por esse período, Pierre George lhe propõe participar da coleção ‘Que sais-je?’. De seu esforço e engenho, veio a público, em 1959, seu ‘Les pays sous-développés’. Esse pequeno livro, quase fascículo, se transformou em sucesso mundial com tradução, muitas sem autorização, em dezenas de línguas. Alguns anos depois, em 1965, no mesmo diapasão, sairia seu ‘Géographie du sous-développement’.

O sucesso dessas duas obras fez com que Michel Arnaud, diretor da Secretaria de Missões de Urbanismo e Habitação, lhe propusesse um tour por Haute-Volta, atual Burkina Faso, sob alegação que Lacoste precisava conhecer melhor a África Negra. Essa viagem, em 1966, ajudou a sofisticar ainda mais as suas impressões sobre a diversidade do mundo em vias de desenvolvimento.

Maio de 1968 marcou profundamente a sociedade francesa. A reação juvenil e sindical compreendia negação ao general De Gaulle, à educação tradicional e tradicionalista e aos valores do mundo burguês. O reflexo imediato foi a reforma educacional. Nessa reforma o ministro da educação Edgar Faure baixa portaria permitindo que professores, mesmo sem ter defendido tese doutoral, acedessem à docência universitária. Nesse contexto, Yves Lacoste vai nomeado professor de Geografia na Universidade de Vincennes. Na mesma leva, seguem para essa nova aventura universitária francesa Michel Foucault, Gilles Deleuze, Jean-François Lyotard, Hélène Cixous, François Châtelet dentre outros.

Nessa experiência de Vincennes, Lacoste foi diretamente confrontado à impressão generalizada, sobretudo dos universitários pretensamente mais politizados vindos da História e da Filosofia, de que a Geografia era uma disciplina, de pretensão científica, amplamente reacionária. Reacionária, sobretudo por silenciar diante dos movimentos políticos daquele mundo contemporâneo.

Nessa lide, Lacoste reabilitou Élisée Reclus (1830-1905), autor do monumental Géographie universelle’ em 19 volumes. Dos mais importantes geógrafos franceses, Reclus fora relegado ao ostracismo pelas ondas de cientificização da Geografia dos séculos 19 e 20 que passaram a pretender certa objetividade desse saber geográfico. Além do mais, Reclus, embora amigo de Bakunin e Kropotkin, fizera críticas severas ao sacrossanto Karl Marx (1818-1883).

Essa performance de Lacoste produziu diversos resultados. Alguns positivos; outros nem tanto. O primeiro fator favorável foi convencer muitos jovens da importância política e social do saber geográfico. Muitos alunos de disciplinas irmãs abdicaram de seus cursos originais para se dedicar à Geografia. O elemento claramente desagradável foi o esfriamento de sua relação com Pierre George, seu mestre da vida inteira.

Geógrafo de imenso prestígio dentro e fora das fronteiras francesas, Pierre George não viveu o maio de 1968 em Paris. Estava em missão no México. Ao retomar suas funções na Sciences Po em outubro daquele ano, foi alvo de contestação por parte dos estudantes que o consideravam expressão do passado e, portanto, de tudo aquilo que as ruas denunciaram meses antes. Lacoste em Vincennes virou o oposto de Pierre George em Paris.

Esses movimentos “modernosos” de Lacoste em Vincennes levaram Pierre George a excluí-lo – ou melhor, não convidá-lo – ao projeto que resultaria no Dictionnaire de la géographie’, primeira edição de 1970, que reuniu praticamente todos os seus discípulos. Esse resfriamento de relação causou muito ressentimento e aborrecimento entre os dois. Tamanha tensão levou Pierre George a se recusar a participar, dez anos depois, do júri de defesa da tese de Yves Lacoste, seu orientando.

Para além desse doloroso mal-entendido, relativamente resolvido no fim da vida de Pierre George quando ele e Lacoste voltaram a ter relações relativamente urbanas e cordiais, o geógrafo de Vincennes, com pouco mais de quarenta anos, um passado comunista somando a intensa convicção política antiimperialista, avança em sua (re)politização da Geografia. Aos poucos, vai (re)trazendo à discussão a expressão geopolítica.

Demonizada no após 1945 por ser entendida como manifestação nazista, a geopolítica passou a ser indexada como prática de intenções reacionárias. Parte importante de ‘La Géographie, ça sert, d'bord, à faire la guerre’ objetiva desfazer esse julgamento malfazejo. Mas antes de ‘La Géographie, ça sert, d'bord, à faire la guerre’, muitos ventos fariam girar os moinhos da vida e da obra de Yves Lacoste.

Na primavera de 1972, a guerra do Vietnã ganha em hostilidade. Enquanto o presidente Richard Nixon (1913-1994) e o secretário Henri Kissinger avançaram em negociações com Mao Tsé-Tung na China, a US Air Force bombardeava sem pudor o norte do Vietnã. Muitos desses bombardeios visavam os diques do rio Vermelho. Consultado em Paris, Lacoste foi convocado a Hanói e em seguida às regiões em sinistro. De retorno à França, fez publicar no Le Monde de 16 de agosto de 1972 uma grande reportagem com explicações geográficas e cartográficas sobre os bombardeios e suas consequências. Sua análise girou mundo. Jornalistas e diplomatas de todas as partes passaram a requisitar suas impressões. Nutrido dessa reputação, avançou na desdemonização da geopolítica. Nesse empenho, empreendeu o início da aventura ‘Hérodote’ que ganhou vida em 1976 e segue ativa, contemplando mais de 150 em 2014, como uma das revistas mais longevas e consistentes da área.

O primeiro número de Hérodote – Géographie de la crise, crise de la Géographie – aborda justamente os desassossegos da disciplina. Na apresentação da revista e do empreendimento que ela visava preencher, Yves Lacoste emprega, então, pela primeira vez a frase – La Géographie, ça sert, d'bord, à faire la guerre – que daria título ao seu livro dos mais célebres.

Cioso de História, Lacoste sabia perfeitamente que a fórmula era depositária de Louis XIV, que ainda no século XVII, pelos idos de 1671, fez informar ao mundo que partia faire la guerre contra os holandeses. Não convencido do impacto do sentido da expressão imiscuída em sua grande apresentação do primeiro número de Hérodote, Lacoste decide alongar o ensaio e impor como título uma frase. Frase que seu editor, François Maspero, retorquiu de imediato “Ce n’est pas un titre!”.

Pouco a pouco, seja pelo sucesso da revista seja pelo sucesso do livro, a expressão geopolítica foi voltando a figurar no vocabulário francês e mundial jornalístico, acadêmico e diplomático. Quando tem lugar o conflito entre o Vietnã e o Camboja em 1978 – na sequência seria a vez do exército vermelho invadir o Afeganistão em 1979 –, André Fontaine, grande conhecedor e analista do mundo do após 1945 e diretor do Le Monde’, não teve dúvidas em asseverar: “c’est de la géopolitique!”. Isso representou um avanço imenso, em muito resultado do esforço pedagógico de Lacoste.

Geopolítica, estratagema de origem alemã, definiu o desejo de potência e reconhecimento dessa nação que, após Bismarck, passou a querer impor seu lugar ao sol e contar em definitivo hors fronteiras.

Contar para além fronteiras envolve, como ensina Carl von Clausewitz (1780-1831), conhecer o mistério escondido depois colina. Jamais foi tão urgente saber desvelar esse mistério. Jamais foi tão importante conhecer o que existe além fronteiras. Jamais foi tão necessária a releitura desse clássico, La Géographie, ça sert, d'bord, à faire la guerre’, de Yves Lacoste.

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