quinta-feira, 19 de janeiro de 2017

Menos Estado de bem-estar social leva a mais Estado penitenciário


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Folha.com, 19/01/17


Menos Estado de bem-estar social leva a mais Estado penitenciário



Por Laura Carvalho*



Com 136 mortes registradas desde o início do ano em prisões brasileiras, o presidente Michel Temer anunciou a liberação das Forças Armadas para atuar em presídios estaduais, lembrando os tempos da monarquia, que reservava ao Exército tarefas típicas dos capitães do mato, como a prisão de escravos em fuga.

Além da falta de preparo dos militares para esse tipo de situação, a medida recebeu a mesma crítica que o anúncio da abertura de novas vagas em prisões feito anteriormente: nenhuma delas ataca a origem do problema.

Como bem descreveram Julita Lemgruber e Rodrigo Ghiringhelli de Azevedo no artigo ‘Show de horrores’ - http://carcara-ivab.blogspot.com.br/2017/01/show-de-horrores.html -, não há solução estrutural para o problema prisional que não passe pela redução do número de presos provisórios, cuja maior parte está presa ilegalmente, e pela revisão da atual política de drogas, que, além de superlotar presídios com usuários e pequenos traficantes, confere cada vez mais poder a facções criminosas. 

A experiência internacional aponta uma terceira precondição para evitar o problema da superlotação carcerária, algo que certamente não está no horizonte do governo Temer ou, o que é ainda mais grave, do debate político-econômico brasileiro atual.

Conforme sugere o estudo empírico seminal dos sociólogos Katherine Beckett e Bruce Western, que utiliza dados dos Estados norte-americanos entre 1975 e 1995, a taxa de encarceramento costuma ser maior onde o Estado de Bem-Estar Social é mais fraco. 

A conclusão dos autores é que a redução dos programas sociais nos EUA durante os anos 1980 e 1990 refletiu a emergência de um novo sistema de administração do que chamam de "a marginalidade social". 

O achado vai na linha do que havia exposto o sociólogo Loïc Wacquant em ‘As prisões da miséria’.



Em vez da redução da intervenção estatal na vida social, a opção por "menos Estado" econômico e social, que é a própria causa da escalada generalizada da insegurança objetiva e subjetiva nos vários países, leva à necessidade de "mais Estado" policial e penitenciário.

As evidências apresentadas por Richard Wilkinson e Kate Pickett no best-seller ‘The Spirit Level’, publicado em 2009, parecem conferir generalidade a tais argumentos. Os dados compilados para um conjunto de países ricos indicam que, quanto maior o nível de desigualdade, maior também é a taxa de encarceramento por habitante. 



O cruzamento de dados mais recentes de encarceramento apresentados pelo ICPR (Institute for Criminal Policy Research) com o índice de Gini divulgado pelo Banco Mundial sugere que essa relação positiva vale para o conjunto de países do G20 e que o Brasil não foge à regra.

Em uma sociedade como a nossa, que nunca deixou de estar entre as mais desiguais do mundo, a opção por medidas de redução estrutural da rede de proteção social, em vez da via da tributação mais justa e do fortalecimento do Estado de bem-estar social, renova a escolha por uma abordagem exclusivista e punitivista de administrar a marginalidade social. 

A proteção aos mais vulneráveis sempre pode caber no Orçamento, mas o genocídio jamais caberá na civilização. 

Enquanto a insustentabilidade do sistema previdenciário em meio à elevação da expectativa de vida for vista pela maioria como mais dramática do que a insustentabilidade de um sistema penitenciário em meio à produção de um número cada vez maior de excluídos, estaremos condenados à barbárie.


*Professora do Departamento de Economia da FEA-USP com doutorado na New School for Social Research (NYC).

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