sexta-feira, 6 de janeiro de 2017

A fraternidade do réu Cédric Herrou







Carta Maior, 6/1/17



O réu Cédric Herrou




Por Adam Nossiter, NY Times





NICE, França — Às vezes era difícil dizer quem estava em julgamento, o contrabandista ou o estado.

O réu, Cédric Herrou, 37, um fazendeiro de azeitonas, não negou que por meses permitiu a passagem de dezenas de migrantes pelas remotas montanhas do vale onde vive. Ele faria de novo, sugeriu.

Ao invés, quando perguntado por um juíz, “porque você faz isso tudo?” Herrou virou a mesa e questionou a humanidade da prática francesa de “caçar” e devolver africanos que chegam ilegalmente da Itália em busca de trabalho e uma vida melhor. Era “indigno”, ele disse.

Têm pessoas morrendo do outro lado da estrada”, respondeu Herrou. “Não é direito. Têm crianças que não estão seguras. É de se enfurecer ver crianças, às 2 da manhã, completamente desidratadas.”

Sou um cidadão francês”, Herrou declarou.

 O julgamento, que começou na quarta-feira, não é qualquer um. Tem tido cobertura significante da mídia francesa por seu rico simbolismo e pelo modo que resume a ambiguidade da política francesa sobre o fluxo de migrantes na Europa e o dilema que eles representam.

A França, dentre as nações europeias, se orgulha de seu humanitarismo esclarecido, fraternidade e solidariedade. E ainda assim, está lutando para reconciliar esses valores com as realidades de um mundo menor e mais globalizado, incluindo o medo do terrorismo.

As contradições estão sendo reveladas em tribunais, na política e em fazendas, nos calçadões de Paris e em estações de trens da Cote d’Azur até o porto de Calais, onde o governo demoliu um enorme campo de migrantes no outono.

Por um lado, políticos na eleição presidencial desse ano estão competindo para ver quem pega a estrada mais dura em relação à segurança das fronteiras do país. A maioria está prometendo uma repressão aos migrantes, com admissão reservada para casos específicos de perseguição política. Os ataques terroristas, incluindo o do último verão em Nice que matou 85 pessoas, exacerbaram o sentimento anti-migrante.

Mas nessas remotas montanhas dos vales, onde judeus fugindo dos nazistas e dos colaboradores de Vichy acharam refúgio durante a 2a Guerra Mundial, Herrou se tornou um herói por liderar um tipo de linha de trem subterrânea para contrabandear migrantes para o norte, muitos com destino à Inglaterra ou Alemanha. Seu trabalho rendeu admiração por sua resistência ao estado e por sua posição de solidariedade ao próximo.

Outros na região parecem concordar. Na praça do lado de fora do tribunal, centenas de simpatizantes se juntaram e gritavam, “somos todos filhos de imigrantes!

Herrou recebeu uma recepção de herói enquanto descia as escadas acompanhado pelas câmeras de televisão.

Dentro, nem mesmo o promotor, Jean-Michel Prêtre, parecia querer o homem lá e chamou sua causa de “nobre”. Ele pediu por uma sentença de oito meses, mas rapidamente reafirmou que a mesma deveria ser suspensa, “é claro”.

Ainda assim, lei é lei.

“Ele demonstrou uma intenção manifesta de violar a lei”, disse Prêtre ao tribunal. “Podem criticar, mas a lei deve ser aplicada.”

O veredito, que será decidido por um painel de três juízes que ouviram o caso essa semana – não houve banca de jurados – está agendado para ser anunciado dia 10 de fevereiro.

A apelação por leniência foi tanto um reconhecimento de desconforto amplo com a lei, quanto um reconhecimento do crescimento do status de Herrou na região de Nice e no interior montanhoso, em Roya Valley.

Herrou foi eleito “Azuréen do Ano” (cidadão de Cote d’Azur do ano) mês passado pelos leitores do principal jornal local, Nice-Matin, para a fúria dos oficiais regionais.




Sou Cédric”, lia uma das placas na multidão. “Vida longa ao justiceiro de Roya”, lia outra.

O tribunal, na quarta-feira, estava lotado de pessoas da montanha – os homens de barba e rabo de cavalo e as mulheres de roupas de pano – que vieram apoiar Herrou e que estavam convencidas de que a justiça está ao seu lado.

A noção de que Herrou está tentando sustentar o que ele vê como valores franceses básicos, ao invés de que está infringindo a lei, é a razão principal pela qual ele goza de um apoio popular considerável. O argumento formou a essência da estratégia de defesa de seu advogado.

Lembrem-se da última palavra do slogan da República Francesa, “Liberdade, Igualdade, Fraternidade”, disse seu advogado Zia Oloumi, ao tribunal.

Eles dizem que Herrou é uma ameaça à República”, disse Oloumi aos juízes. “Ao contrário, eu creio que ele está defendendo seus valores”.

“Sabe, temos esse valor, fraternidade, e o dicionário é bem claro quanto à isso”, disse Oloumi. “Pensem sobre o impacto da sua decisão na aplicação prática da ideia de fraternidade”.

Herrou não estava provando nenhum ponto político, insistiu Oloumi. Estava meramente respondendo a uma crise humanitária em seu próprio quintal; o Roya Valley se tornou uma via alternativa para os migrantes.

Os juízes não responderam. Mas a leveza da sentença pedida por Prêtre sugeriu que os conceitos invocados por Oloumi surtiram efeito.

Os acusadores de Herrou pareciam surpreendidos por sua teimosia. Nem todos os migrantes pegos por Herrou estavam na beira da estrada. Ele encontrava muitos em campos de migrantes ao longo da fronteira da Itália  em Ventimiglia, procurando especialmente por mulheres e crianças.

A juíza presidente, Laurie Duca, o lembrou que havia sido preso em agosto, perto de sua casa em Breil-sur-Roya, com uma van cheia de migrantes.

Na época, o promotor o soltou, sugerindo que as motivações humanitárias de Herrou o absolveram. Essa primeira detenção foi apenas um aviso.

“Depois de agosto, você disse saber que isso é ilegal”, apontou a juíza no tribunal. Herrou persistiu, descrevendo seu trabalho de contrabando de migrantes aos jornalistas no outono passado e até mesmo ocupando um campo de verão da ferrovia do estado em desuso quando sua própria residência ficou sobrecarregada.

Nesse ponto, no meio de  outubro, as autoridades decidiram que já estavam cansadas dele. “Você estava lá, e era extremamente ativo”, disse a juíza. “Porque tanta mídia?”

Herrou respondeu, “é direito que a sociedade saiba de tudo isso”.


A juíza e o promotor sugeriram que dessa vez Herrou não ganharia o passe humanitário que já o havia beneficiado. O establishment político local está furioso com ele.

No momento exato em que precisamos de controles mais rígidos, as ações ideológicas e premeditadas de Herrou são um grande risco”, escreveu Eric Ciotti, liderança de direita no Parlamento, no Nice-Matin.

Prêtre, o promotor, sugeriu que a persistência e a abertura de Herrou foram sua anulação.

“Herrou reconhece tudo”, Prêtre disse, surpreso. “Esse julgamento deriva de uma estratégia de comunicação por uma causa que eu respeito totalmente”.

E ainda assim, “isso foi o que ele disse à policia. Ele disse, “estou violando a lei”. Mas eu sou o promotor, preciso defender a lei”.

Nenhum comentário:

Postar um comentário