segunda-feira, 31 de outubro de 2016

O escândalo jurídico


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Carta Maior, 31/10/2016



O escândalo jurídico



​Por ​Raúl Zaffaroni, para o Página/12 *

 
Por sorte, ainda não perdi a capacidade de assombro, e por isso voltei a experimentá-la, com a leitura de uma sentença que ocorreu recentemente no Brasil, tomada pelo Tribunal Federal Regional da 4ª Região, na que se diz, textualmente, que a Operação Lava Jato é um caso inédito, único e excepcional no direito brasileiro, e que, como tal, enfrentará situações inéditas, que fogem das regras do processo comum, e que, por isso, são permitidas exceções às normas que estabelecem garantias constitucionais, como as que proíbem grampear comunicações telefônicas sem as precauções legais.

A excepcionalidade foi o argumento legitimante de todas as ações inquisitórias ao longo da História, desde a caça às bruxas até os nossos dias, passando por todos os golpes de Estado as conseguintes ditaduras. Ninguém nunca exerceu um poder repressivo arbitrário no mundo sem invocar a “necessidade” e a “exceção”, e também seja verdade que todos afirmaram hipocritamente que atuavam legitimados pela urgência de salvar valores superiores, diante da ameaça de males de extrema gravidade.
 

Assim, Carl Schmitt destruiu a constituição de Weimar, hierarquizando suas normas e argumentando que o princípio republicano permitia, em situações excepcionais, ignorar todas as demais normas. Embora esse seja um raciocínio perverso para legitimar o poder ilimitado do Führer, ao menos invocava o princípio republicano – que, por certo, pouco ou nada interessava efetivamente.

Até aqui, há motivos de crítica e repúdio, mas não de assombro, que é justamente o que causa a sentença que lemos. Este último nasce do fato de que não se observa o trabalho de invocar nenhum valor superior, nem de inventar alguma emergência grave, senão que diz, diretamente, que se pode ignorar a Constituição quando é necessário, para aplicar a lei penal em casos que não se considerem “normais”.

O assombro que experimentamos diante desta sideral sinceridade revanchista, que se dissemina por toda a nossa região, passando por cima dos mais elementares limites do direito, sem sequer se dar ao trabalho que Carl Schmitt tomou e seu tempo.

A sentença brasileira não é um fato isolado, e merece um lugar no álbum dos maiores absurdos jurídicos. Desta coleção, os argentinos ganharam várias novas figurinhas durante este ano.

Assim, vemos que também é por ser “excepcional”, que se faz “necessário” nomear dois ministros da Corte Suprema por decreto, destituir a Procuradora Geral e suprimir a independência do Ministério Público e submetê-lo a um órgão político, destituir os juízes “da roda presa”, estigmatizar um movimento de juízes com o argumento de “desratizar” o Poder Judiciário, criminalizar a política monetária – e, ao mesmo tempo, se enriquecer com uma mudança abrupta –, entre outras coisas.

Obviamente que, por muito que se negue, não se pode ocultar o afã revanchista que, em alguns casos, leva a perder a calma e a exigir argumentos jurídicos, que não se esgrimem porque parece que já não resta criatividade perversa, ou talvez porque se escolheu diretamente o caminho pragmático da sinceridade.

Lamentavelmente, nos encontramos diante de um revanchismo exercido ao amparo de discursos legitimantes com baixíssimo nível de elaboração: igual que o da sentença brasileira, dá a impressão de que se exibe sem buscar a mais mínima dissimulação.

Basta mencionar a extrema grosseria de ser invocar – sem precedentes em toda a história argentina – o crime de “traição à Pátria” (contra Cristina Kirchner e seu então chanceler, Héctor Timerman, a respeito da causa da morte do promotor Alberto Nisman, em janeiro de 2015), quando não há nem houve guerra, o que parece ser um detalhe menor para aqueles que não leram o artigo 119º da Constituição. Só faltou que se inspirassem na sentença brasileira e afirmassem que, em tempos de “exceção”, qualquer coisa é igual à guerra.

Mas, sem dúvidas, a mais ostensível combinação de absurdo jurídico e, ao mesmo tempo, obsessão revanchista, foi a prisão preventiva da líder indígena Milagro Sala e seus apoiadores, em Jujuy.

Para legitimar essa prisão política, consolidar a vingança contra Sala e destruir sua obra, não se furtaram de usar todos os recursos ilegítimos que se pode imaginar: juízes especiais, promotores especiais, juízes-deputados ou deputados-juízes no Supremo, ameaças aos defensores, advertências por apelações, clonagem ao infinito de processos e processamentos, indução de testemunhas, ou seja, o escândalo jurídico.

Devido à transcendência internacional do escândalo, agora se subestima um órgão da ONU (justamente o Grupo de Trabalho sobre Detenções Arbitrárias), que exigiu o fim da prisão de Milagro Sala, e se faz referência a uma mera “recomendação”. Além do caráter jurídico do decidido em órbita internacional, chama muito a atenção o fato de que um governo que se esforçou – até indevidamente – para apoiar a candidatura de sua chanceler à Secretaria Geral da ONU, hoje trate com displicência uma “recomendação” proveniente de um de seus órgãos, quando este diz claramente o que muitos já vínhamos repetindo há meses: Milagro Sala sofre prisão por motivos puramente políticos.

Seja qual for o valor jurídico do que foi resolvido no âmbito da ONU e do que de agora em diante aconteça, a verdade é que já, neste momento, por culpa da pura obsessão revanchista, a Argentina está fazendo um papelão internacional.

Mas os papelões internacionais não afetam somente um governo, seja ele federal ou regional, mas sim a todos os cidadãos. Nosso país lutou durante décadas para limpar sua imagem em termos de direitos humanos, e agora acontece que, em pleno governo democrático, foi preciso acudir a uma instância internacional para se conseguir o fim de uma prisão por causa puramente política. No plano mundial, todos os argentinos passam a carregar o ônus de ser de um país que tem prisioneiros políticos. O dano está consumado, e não afetou somente a Milagro Sala, senão toda a cidadania. Seria bom não agravá-lo mais.

* Professor emérito da Universidade de Buenos Aires.

Tradução: Victor Farinelli




 


Carta Maior, ​30/10/2016


As vozes da Casa Grande em tempos de retrocesso



​PorMagda Barros Biavaschi e Miguel Soldatelli Rossetto



As desigualdades se aprofundam em tempos de capitalismo globalizado e hegemonizado pelos interesses das finanças. Enquanto em 1973, a população 1% mais rica detinha 10% da renda, em 2013 passou a deter 20% (PIKETTY, 2014). Nesse cenário, os direitos sociais sucumbem à força bruta e às políticas de ajuste que, apesar de comprovadamente ineficazes, continuam sendo “recomendadas” pelos organismos emprestadores de dinheiro. Movido por um desejo insaciável de acumulação de riqueza abstrata (BELLUZZO, 2013), o capitalismo vai engendrando novas formas de organização, buscando eliminar quaisquer obstáculos ao seu livre trânsito. No Brasil, por exemplo, as políticas sociais públicas inclusivas, o Direito do Trabalho e a Justiça do Trabalho. Não à toa, em recursos extraordinários, está sendo postulado do STF que “roube a fala” do TST para que este, em suas decisões, não ofereça limites “à livre iniciativa”, como se estivéssemos no século XIX, em tempos da Constituição liberal de 1891.
 
Gilberto Freyre, em 'Casa Grande & Senzala', desnudou o caráter despótico da sociedade escravocrata brasileira. Uma sociedade centrada na vontade e no poder do senhor da Casa-Grande, o qual não conhece o bem e o mal; apenas seus desejos, a tudo e a todos objetivando para realizá-los (BIAVASCHI, 2007). Em 1988 a Abolição livrou o país de seus inconvenientes. Quanto aos negros, porém, abandonou-os à sorte. Nesse processo, consolidou-se a exploração de uma mão de obra barata, em uma sociedade cujo tecido era costurado pelo signo da desigualdade e da exclusão (OLIVEIRA, 1990). As dificuldades de integração à sociedade eram atribuídas à inferioridade racial: marcas de uma herança que acabaram inscritas na estrutura social, econômica e política deste Brasil de mil e tantas misérias. Assim, a relação entre escravo e senhor apenas formalmente acabou por culminar no homem “livre”, sem que fossem superadas as condições instituintes da dominação e sujeição (BIAVASCHI, 2007).
 
Ainda hoje há resquícios dessa herança que se expressam, por exemplo, na ausência de uma política eficaz de democratização do acesso à terra e à renda; nas dificuldades enfrentadas para regulamentar a “PEC das domésticas” e a PEC 57A/1999 que permite a expropriação da propriedade quando evidenciada exploração da força de trabalho análoga à de escravo; nas tentativas de flexibilização do conceito de trabalho escravo; nas formas de preconceito e discriminação presentes na formação da sociedade brasileira que, extrapolando a esfera doméstica, volta e meia afloram em diversos setores da sociedade, da política e do Judiciário (BIAVASCHI, 2007).
 
A partir de 1930, em processo não linear completado pela Constituição de 1988 - que elevou os direitos do trabalho à condição de direitos fundamentais sociais e condicionou a livre iniciativa aos princípios da dignidade humana e do valor social do trabalho -, mulheres e homens trabalhadores, a ferro e fogo, foram conquistando o status de sujeitos de direitos trabalhistas, passando pela: criação das Juntas de Conciliação e Julgamento, em 1932; CLT, em 1943; regulamentação da Justiça do Trabalho em 1939, instalada em 1941 e integrante do Judiciário em 1946. Justiça essa incumbida de concretizar um direito novo, profundamente social que, desde sua gênese, buscou compensar a assimetria nas relações de poder entre empregado e empregador, colocando diques à ação trituradora do movimento do capital. Daí porque esse Direito e as instituições aptas a dizê-lo têm sofrido duros golpes em tempos de regresso liberal (BIAVASCHI, 2007).


Nos governos Lula e Dilma, a política de valorização do salário mínimo, os programas sociais como Bolsa Família e outros, os benefícios da Previdência, o Pro-Uni, os sistemas de quotas, enfim, constituíram um patamar civilizatório que melhorou a vida dos menos favorecidos. Mesmo assim, ainda que os dados da distribuição de renda evidenciem melhoras, o Brasil permanece entre as piores posições, como os gráficos a seguir mostram-no em relação a alguns países do mundo e a evolução recente do índice no País.



Ainda que muito se precise andar para completar a caminhada de superação das heranças coloniais, interesses econômicos e financeiros internos e externos ao Brasil interromperam esse processo. O impeachment da Presidente Dilma, sem prova de crime que o justifique, golpeou a democracia brasileira. As forças que se aglutinam em torno dele deixam a cada dia evidente que, além dos temas relacionados à soberania nacional, a questão que as move é introduzir uma agenda ultraliberal, com potencial altamente desigualador e impacto negativo às políticas inclusivas, justo em tempos em que as desigualdades são acirradas pela ditadura dos mercados financeiros (BIAVASCHI, KREIN, 2016).
 
A PEC 241, aprovada na Câmara, é estruturante do modelo que buscam implementar, como também: a reforma da Previdência; a prevalência do negociado sobre o legislado; o PLC 30/2015 (PL 4330/04 na Câmara) que libera a terceirização para quaisquer atividades; a flexibilização do conceito de trabalho escravo; a redução da idade para o trabalho, entre outras. Os que as defendem apostam no aprofundamento do ajuste fiscal, com severo corte de gastos públicos. E ao argumento falacioso da conquista da “modernidade”, maior produtividade e competitividade, clamam pela “quebra” da “rigidez” das normas da CLT de 1943, verticalizadas pela Constituição de 1988. O movimento é de regresso. Nessa dança, a Casa Grande dá o tom e o som.
 
O programa 'Uma Ponte para o Futuro', do PMDB,  http://pmdb.org.br/wp-content/uploads/2015/10/RELEASE-TEMER_A4-28.10.15-Online.pdf, fundamenta muitas das propostas do governo Temer. Acaso aprovadas, mais uma vez serão colocados obstáculos à difícil caminhada superadora das heranças coloniais rumo a uma nação moderna e industrializada, hoje integrante do G20 e dos Brics. Sua não adoção pela então Presidenta - segundo o Presidente Temer referiu nos EUA em encontro com empresários - teria sido uma das razões do impeachment.
 
Daí causarem perplexidade as declarações do Ministro do STF, Gilmar Mendes, incumbido de zelar pela Constituição, sobre Bolsa Família, afirmando ser “compra de voto”, e sobre a Justiça do Trabalho. Em liminar, que se confia não terá chancela da Corte, suspendeu o andamento das ações sobre ultra-atividade de normas coletivas, forte na Súmula 277 do TST, assinalando que essa interpretação atende a uma “lógica voltada a beneficiar apenas os trabalhadores”, cogitando de “fraude hermenêutica”, “jurisprudência sentimental”. Em São Paulo, vaticinou: “Tenho a impressão de que houve uma radicalização da jurisprudência, no sentido de uma hiperproteção do trabalhador, tratando-o quase como um sujeito dependente de tutela”, afirmando que o Brasil é “desenvolvido industrialmente” com “sindicatos fortes e autônomos” e, inclusive, um Presidente “vindo da classe trabalhadora”.
 
Em um país de profundas desigualdades, com desemprego novamente alarmante e formas de contratação burladas que retiram da proteção social milhares de brasileiros, tais afirmações privilegiam um dos polos da relação, o capital. Opção que, contraposta ao princípio constitucional do valor social do trabalho que fundamenta a ordem social e a econômica (artigos 1º, IV e 170), acirra as inseguranças, fomenta a violência e traz sérias dificuldades à construção de uma sociedade civilizada e democrática. Sonho do qual a humanidade ainda não acordou. Muito menos o Brasil. 
 
 
(*) Magda Barros Biavaschi é desembargadora aposentada do TRT4, Pós-doutora em Economia do Trabalho, IE/UNICAMP e Pesquisadora no CESIT/IE/UNICAMP.
 
(**) Miguel Rossetto foi vice-governador do Rio Grande do Sul e ministro do Desenvolvimento Agrário, da Secretaria-Geral da Presidência da República e do Trabalho e Previdência social, nos governos dos Presidentes Lula e Dilma Rousseff 

 
Referências bibliográficas
 
BELLUZZO, Luiz Gonzaga. O capital e suas metamorfoses. São Paulo: UNESP, 2013.
BIAVASCHI, Magda Barros. O direito do trabalho no Brasil – 1930-1942. São Paulo: LTr, 2007;
BIAVASCHI, Magda Barros; KREIN, José Dari. O retorno ao passado II: o canto da sereia e os desencantos na nova ordem. In: RAMOS, Gustavo Teixeira; MELO FILHO, Hugo Cavalcanti, LOGUERCIO, José Eymard, RAMOS FILHO, Wilson (Orgs.). A Classe trabalhadora e a resistência ao golpe de 2016.  Baurú: Editorial Praxis, 2016.
BARBOSA DE OLIVEIRA, Carlos Alonso; HENRIQUES, Wilnês. Cadernos do CESIT. Texto para discussão nº. 03. Determinantes da Pobreza no Brasil. Campinas, julho de 1990
PIKETTY, Thomas. O Capital no século XXI. Rio de Janeiro: Intrínseca, 2014.
PMDB. Uma Ponte para o Futuro. São Paulo: Fundação Ulisses Guimarães, 2015. In. http://pmdb.org.br/wp-content/uploads/2015/10/RELEASE-TEMER_A4-28.10.15-Online.pdf. Acessado em 25 de abril de 2016.

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