quinta-feira, 14 de julho de 2016

O racismo na Rota 66






Folha.com, 14/07/16


​​Rota 66 tinha motéis e até banheiros proibidos para viajantes negros




​Da  Associated Press




Ela costumava ser chamada de "estrada mãe", uma rota que unia Chicago a Los Angeles, cruzando o sudoeste dos Estados Unidos em meio a restaurantes e motéis com luminosos em néon. Para muita gente, a Rota 66 representava a liberdade e as possibilidades ilimitadas dos Estados Unidos no século 20.

Para os viajantes negros, no entanto, não era nada disso. Poucos motéis e restaurantes aceitavam servi-los ao longo dos 4.000 quilômetros da rodovia entre os anos 1930 e 1960. 

Os negros norte-americanos que buscavam férias ao longo da Rota precisavam, então, planejar detalhadamente seus itinerários a fim de evitar violências nas "cidades crepúsculo", que recorriam a intimidação e leis segregacionistas para exclui-los. Os viajantes muitas vezes carregavam vasos sanitários portáteis em suas jornadas, porque eram proibidos de usar os banheiros em muitos dos estabelecimentos ao longo da estrada.
 
"Era uma experiência totalmente diferente de usar a Rota 66, sobre a qual realmente não se fala muito. A estrada costuma ser retratada como um caminho aberto, de liberdade e aventura", diz Katrina Parks, documentarista que trabalhou no projeto

​'Women on the Mother Road' (http://www.route66women.com), sobre mulheres na Rota. "Embora isso fosse certamente verdade, há também esse outro lado, de que a estrada podia ser um lugar muito ameaçador." 


 

Mas havia poucos lugares que aceitavam os turistas negros. Para ajudar o viajante, eles eram reunidos em uma espécie de guia, chamado 'Green Book'.


Agora, uma escritora está mapeando os estabelecimentos que no passado ofereciam refúgio seguro aos que arriscavam percorrer o caminho em suas viagens familiares de férias. Candacy Taylor, líder do Green Book Project, disse que barbearias, postos de gasolina e motéis em meio ao deserto que aceitavam a comunidade afrodescendente correm o risco de se perder para sempre se algo não for feito para mapear esse legado.

 

"Acredito que essa seja uma maneira de reexaminar nossa relação com o passado e observar com a atenção necessária o lugar a que chegamos", disse Taylor, autora de ‘
​​
Moon Route 66 Road Trip’. Ela recentemente recebeu verbas de pesquisa para localizar e mapear os estabelecimentos cobertos pelo "Green Book".


O hotel Booker T. Washington, em St. Louis; o restaurante Off-Beat, em Oklahoma; e a Clifton's Cafeteria, em Los Angeles, estão entre os lugares esquecidos que o "Green Book" recomendava. Muitas das edificações, porém, agora estão abandonadas, em bairros que caíram vítimas da pobreza. Outras foram demolidas ou reformadas.

A Rota 66 foi desativada como rodovia federal em 1985, mas continua a manter seu lugar histórico como o principal percurso para os norte-americanos que no passado se aventuraram em direção ao oeste. A rodovia atravessava oito Estados, e oferecia aos turistas, em sua maioria brancos, a opção de parar para comer em restaurantes amistosos em cidades pequenas e acolhedoras. Nat King Cole fez sucesso em 1946 com a canção (Get Your Kicks on) Route 66’.

"A ironia é que Nat King Cole não seria bem vindo na maioria dos motéis ao longo da estrada", disse Taylor.

Taylor jamais teria ouvido falar sobre essa parte da Rota se não tivesse encontrado por acaso um "Green Book" quando pesquisava sobre a estrada para outro livro. O guia foi publicado entre 1936 e 1966 por Victor Green, funcionário do serviço postal norte-americano que vivia em Brooklyn.

Na capa, o guia aconselha "tenha o seu 'Green Book' sempre com você. Ele pode ser necessário". A edição de 1949 prometia oferecer "ao viajante negro informações que evitarão que ele encontre dificuldades e embaraços e que tornarão sua viagem mais agradável".


NA ESTRADA

Jewel Hall, 84, viajou pela Rota 66 e outras rodovias norte-americanas com seu marido, Fred, nos anos 1950. O casal vivia em Rio Rancho e raramente se arriscava a pegar a estrada sem o "Green Book".

"Restaurantes? Nosso restaurante era o nosso carro, quando não tínhamos o livro conosco", disse Hall. "Às vezes, não arriscávamos parar. Não sabíamos o que esperar."

Mas quando os viajantes negros encontravam um lugar que os acolhia bem, graças ao livro, faziam contato com outros viajantes e sentiam estar em família, disse Hall. Os proprietários dessas empresas eram em geral negros ou brancos simpáticos à causa, ela conta.

Um lugar que recebia negros era o De Anza Motor Lodge, no Novo México, um estabelecimento cujo proprietário era Charles Wallace, comerciante e colecionador de arte indígena norte-americana. O motel, decorado por murais com cenas indígenas e que também oferecia um café anexo, era parada popular entre escritores e artistas que percorriam a Rota depois da Segunda Guerra Mundial. Os hóspedes podiam assistir a shows com cantores indígenas e de origem mexicana, em casas noturnas próximas.

Hoje, o estabelecimento está fechado e é o alvo de um projeto de desenvolvimento da prefeitura de Albuquerque, que quer salvar o edifício.

Taylor diz que outras cidades, grandes e pequenas, deveriam reconhecer os locais que o "Green Book" recomendava como sítios culturalmente importantes. Ao reconhecer o papel desses estabelecimentos, as cidades compreenderiam melhor a luta pelos direitos civis.

"Os lugares que os viajantes negros visitavam eram realmente hostis. É preciso ter isso em mente", disse Taylor. "Assim, para eles, a ideia de uma viagem de férias era uma declaração de propósitos, quase uma demonstração de sua persistência".


Tradução de PAULO MIGLIACCI

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