domingo, 24 de abril de 2016

Uma experiência com a corrupção


http://www1.folha.uol.com.br/serafina/2016/05/1763279-uma-experiencia-com-a-corrupcao.shtml



Folha.com, 24/04/16


Uma experiência com a corrupção



Por Henrique Goldman



Ao assistir o bizarro exercício de democracia que foi a votação do impeachment na Câmara e ver deputados corruptos mandando beijinho para os netos no plenário, lembrei de um contato direto e pessoal com a corrupção.

Em meados da década de 1980, eu vivia em Roma. A RAI, rede de televisão estatal italiana, aprovou um projeto de documentário que eu dirigiria e produziria. Era de baixo orçamento, mas ainda assim o contrato final demorava para sair. Percebi que havia algum entrave.

Mesmo depois de entregar na administração uma lista absurda de documentos que incluía até um "certificato anti-mafia", um bizarro documento obtido em qualquer cartório que atestava, em troca do equivalente a R$ 100, que não se era mafioso, eu esperava por semanas pela autorização final e a coisa não acontecia.

Um dia, impaciente e preocupado, fui encontrar a chefe da administração do canal, uma senhora antipática e coberta de joias. Perguntei quando poderia ter o contrato pois precisava começar a filmar. Ela disse, com um sorrizinho cínico, que não tinha a menor ideia. Perguntei se eu podia fazer algo para apressar o processo. Ela sugeriu que eu procurasse uma amiga brasileira, que vendia filmes para a emissora, e perguntasse se ela conhecia alguma solução para o meu problema.

Confuso, procurei minha amiga e expliquei a situação. Ela respondeu sem hesitar: "compra dois mil dólares e entrega num envelope". Fiquei constrangido mas, na cara dura, entreguei a grana na administração e poucas horas depois recebi o contrato assinado.
 
Aquilo fazia parte da vida de qualquer produtor na Itália. A corrupção era capilar, onipresente e exercitada ao ar livre.

Num café em frente a sede da RAI, todas as tardes podia-se encontrar um senhor barrigudo, conhecido por todos, que ficava sentado na mesma mesa recebendo visitas como um capo mafioso. Ele era uma espécie de agente, que conseguia empregos na rede — que pelas leis trabalhistas vigentes eram praticamente vitalícios — em troca de subornos.

As relações de trabalho eram naturalmente corrompidas e às vezes propinas podiam se combinar com gestos de carinho ou gentileza. Uma vez, logo antes do Natal, fiz um teste de elenco para um filme, e vários candidatos a atores me trouxeram panetones, garrafas de vinho e torrones, no afã de conquistar um papel.

Logo depois este sistema foi momentaneamente virado de cabeça para baixo pela famigerada operação Mani Pulite (Mãos Limpas), o equivalente local da nossa Lava Jato, que envolveu cerca de 5.000 políticos, funcionários públicos e empresários e paralisou o país durante anos. Num dado momento, a metade dos parlamentares italianos estava sendo investigada.

Num dos atos iniciais da operação, o procurador Antonio di Pietro, uma espécie de Sergio Moro local, mandou um caminhão escoltado pela polícia estacionar na porta da RAI para confiscar arquivos inteiros.
 
Uma das consequências da operação foi a ascensão de Silvio Berlusconi, um bilionário dono de redes de televisão, julgado em vários casos de corrupção, sonegação de impostos, abuso de poder e até condenado por prostituição de menor. Atacando a classe política corrupta, Berlusconi conseguiu tomar o poder e perpetuar o próprio regime da corrupção que a Mani Pulite tentou eliminar.
 
Um dado assustador: Berlusconi foi primeiro-ministro da Itália quatro vezes entre 1994 e 2011. Quem sabe, depois de tudo, talvez aquela senhora dos contratos continue trabalhando na RAI.

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