quinta-feira, 29 de outubro de 2015

Retrocesso armado


http://www1.folha.uol.com.br/opiniao/2015/10/1699837-retrocesso-armado.shtml



Folha.com, 29/10/2015



editorial

Retrocesso armado



Como se o Legislativo já não merecesse críticas suficientes pelo envolvimento de parlamentares em escândalos de corrupção e pela estultice diante da crise econômica, alguns deputados deram nesta semana mais uma lamentável demonstração de irresponsabilidade.

Dando de ombros para os avanços conquistados desde 2004, uma comissão especial da Câmara aprovou um projeto de lei que revoga o Estatuto do Desarmamento.
 
O texto reduz de 25 para 21 anos a idade mínima para a compra de armas, amplia a validade do porte de três para dez anos e, para espanto geral, autoriza que pessoas respondendo a inquérito policial ou processo criminal também possam ter e carregar esses artefatos.

Há mais: o projeto em tramitação concede o porte de arma – hoje em geral restrito aos responsáveis pela defesa e pela segurança pública – a parlamentares, advogados da União, oficiais de Justiça e agentes de trânsito, entre outros.

Se existisse alguma dúvida sobre a orientação da medida, o deputado Rogério Peninha Mendonça (PMDB-SC) tratou de eliminá-la. "Hoje a regra é praticamente a proibição da posse e do porte de armas; pelo meu projeto de lei, a regra passa a ser a permissão."

A linha de pensamento é conhecida: o "cidadão de bem" precisa se proteger da "bandidagem". De resto, segue o raciocínio, o elevado número de assassinatos prova que o estatuto se mostrou infrutífero.
 
Os dados sobre violência, contudo, embasam conclusão bem distinta. De 1980 até 2003, a taxa de homicídios por 100 mil habitantes cresceu de 11,7 para 28,9. Após a adoção do estatuto, em 2004, essa escalada foi interrompida.
 
Flexibilizar a lei fará aumentar as cifras dessa tragédia – e em parte por culpa de "cidadãos de bem". Um estudo revelou que 83% dos assassinatos no Estado de São Paulo em 2011-2012 com motivação esclarecida foram cometidos por razões fúteis, como rixas e brigas de casal. Tais leviandades tendem a crescer com a maior circulação de armas.
 
A "bandidagem", por seu turno, terminará se beneficiando. Pesquisas já indicaram que cerca de 80% das armas apreendidas em São Paulo, sobretudo as vinculadas a crimes, eram de fabricação nacional – vale dizer, um dia foram vendidas legalmente. Impedir o comércio, portanto, diminui a oferta de artefatos para criminosos.

Críticos do desarmamento, todavia, não se deixam convencer. Na falta de melhor argumento, reclamam que a lei fez cair o número de estabelecimentos que comercializam armas, de 2.400 para 200. Ruim? Talvez para fabricantes e vendedores desses artefatos, bem como para parlamentares que receberam doações do setor – 11 deles integravam a comissão da Câmara.
 
Talvez isso explique por que o colegiado avaliza o porte para quem responde a inquéritos policiais ou processos criminais. Afinal, o cliente sempre tem razão.

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