quinta-feira, 14 de maio de 2015

Quem estuda medicina no Brasil pertence a uma elite muito distante da realidade brasileira



http://www1.folha.uol.com.br/fsp/especial/219119-pais-aumenta-n-de-medicos-mas-concentracao-continua.shtml



Folha.com, 14/05/2015


País aumenta nº de médicos, mas concentração continua

 
 
JULIANA COISSI DE SÃO PAULO
             

O Brasil nunca viveu uma expansão de médicos como atualmente, com novas vagas em escolas de medicina e vinda de estrangeiros pelo Mais Médicos. A distribuição, porém, permanece desigual pelo território.
 
A média nacional, de dois médicos por mil habitantes, contrasta com locais como Maranhão, Pará e Amapá, que não mantêm um profissional para cada grupo de mil, diz a Demografia Médica no Brasil 2013, do CFM (Conselho Federal de Medicina).
 
Baixa remuneração e falta de condições de trabalho, aliadas a qualidade de vida dos grandes centros, explicam a concentração de profissionais, dizem especialistas.
 
O país reúne hoje 430 mil médicos, segundo o CFM (o Ministério da Saúde estima pouco mais de 400 mil). Nos anos 90, eram 219 mil profissionais. A pasta prevê chegar a 600 mil médicos em 2026 através da criação de mais vagas em cursos de medicina e nas residências. Assim o país alcançaria a marca de 2,7 profissionais para cada mil habitantes.
 
No país, o Maranhão apresenta a pior proporção de médicos no país - 0,71 a cada mil habitantes. Para reverter o quadro, o governo Flávio Dino (PC do B) traçou metas até "sonhadoras", admite o secretário estadual da Saúde, Marcos Pacheco.
 
O objetivo é dobrar o número de hospitais de grande porte (atualmente são quatro), de centros de apoio ao diagnóstico espalhados pelo Estado (são 12) e ampliar as vagas na universidade estadual.
 
Em Roraima, com o menor número absoluto de médicos - cerca de 900 -, os municípios têm dificuldade para pagar em dia. "O prefeito não paga dois, três meses e o profissional desiste", diz o secretário-adjunto da pasta, César Penna.
 
Se o Mais Médicos conseguiu levar profissionais para áreas remotas do Norte e Nordeste, o desafio agora é a carência de especialistas, diz Wilson Alecrim, presidente do Conass, entidade que reúne secretários da saúde dos Estados e chefe da pasta no Amazonas.
 
"É a hora do segundo passo. O profissional do Mais Médicos consulta, mas, em muitos casos, o paciente tem de ser referenciado para o especialista", afirma ele.

QUALIDADE
 
A expansão de vagas na formação médica é vista com preocupação pelas entidades médicas. "É excessiva a formação médica que o governo federal está propondo", afirma o presidente do CFM, Carlos Vital Tavares Corrêa Lima. "São abertas escolas sem condições de ensino e com dificuldade de docência e de infraestrutura", completa.
 
Segundo o Ministério da Saúde, o número de vagas em medicina, atualmente de 0,8 por dez mil habitantes, é muito baixo. "Posso assegurar que não tem uma expansão de vagas além da necessidade", afirma Hêider Aurélio Pinto, secretário de Gestão do Trabalho e da Educação na Saúde da pasta.

 
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Frieza do médico é queixa comum entre pacientes



COLABORAÇÃO PARA A FOLHA


As iniciativas para melhorar a relação entre estudantes de medicina e seus pacientes surgem como resposta a uma queixa comum: a de que os médicos são frios e conversam pouco durante os atendimentos.
 
"Não precisa perguntar muito para constatar que as pessoas saem insatisfeitas das consultas," afirma Rodrigo Lima, diretor da Sociedade Brasileira de Medicina de Família e da Comunidade. É uma impressão que independe de classe social. "Mesmo quem tem plano de saúde diz que não foi bem atendido."
 
Para Izabel Cristina Rios, coordenadora do núcleo de humanização do Hospital das Clínicas da USP, a relação médico-paciente em muitos casos já poderia ser chamada de relação instituição-cliente: a pessoa paga o hospital ou convênio e é atendida.
 
Ela não sabe dizer se é a formação técnica das universidades que deixa os médicos mais frios ou se é o mercado que dificulta um atendimento mais humanizado. "Não dá para separar. O ensino é voltado para o trabalho e o mercado pede um profissional técnico e rápido", diz.
 
Antonio Carlos Lopes, presidente da Sociedade Brasileira de Clínica Médica e diretor da Escola Paulista de Medicina da Unifesp, culpa a formação médica. Segundo ele, a universidade valoriza o conhecimento técnico em detrimento de valores humanos como ética e respeito.
 
Ele é crítico às mudanças curriculares nos cursos de medicina feitas pelo Ministério da Educação no ano passado, que devem ser incorporadas pelas universidades até o fim de 2018. Entre outras coisas, as novas diretrizes preveem estágio obrigatório no SUS e um maior peso para as práticas humanistas.
 
"Não tem como impor uma mudança para todo o país. Um currículo realmente humanista deveria ser centrado na comunidade e nas doenças prevalentes de cada região", diz Lopes.
 
Já para Lima, as modificações são interessantes, mas insuficientes. "O modelo da formação médica de hoje desencoraja os estudantes. Não precisamos ensinar os alunos a serem humanos, precisamos deixar de ensinar o oposto."
 
Henrique Batista e Silva, secretário-geral do Conselho Federal de Medicina, critica, além do ensino, as políticas públicas de saúde. "Não há boas condições de trabalho, falta tempo, os médicos são mal remunerados. Isso contribui para que as boas práticas não sejam aplicadas."

OUTRO LADO
 
Hêider Aurélio Pinto, secretário de Gestão do Trabalho e da Educação na Saúde do Ministério da Saúde, diz que não dá para culpar o sistema. "Exemplos mostram que é possível fazer diferente, como com o programa Mais Médicos e com a política de humanização do SUS. Na atenção básica, orientamos que sejam criados vínculos com o paciente e que ele se sinta acolhido."
 
Em nota, o MEC afirmou que as novas diretrizes curriculares foram criadas com base em uma série de audiências públicas e têm como fim integrar a educação médica brasileira a um movimento mundial em que, "além de competência técnica, (...) é esperado do profissional médico um desenvolvimento adequado de sensibilidade humanística".
 

 
 

 
 

Mulheres predominam no novo perfil da profissão


 
Cláudia Collucci, de São Paulo
             

Mulher, jovem e branca. Mora com os pais, nunca trabalhou, sempre estudou em escola privada e fez ao menos dois anos de cursinho para entrar na faculdade.
 
Os pais têm curso superior e ganham acima de dez salários - condição de menos de 3% da população brasileira.
 
Esse é o perfil dos recém-formados em medicina no Estado de São Paulo, segundo dados inéditos do Cremesp (conselho regional de medicina), extraídos do exame que se tornou obrigatório para quem deseja atuar no Estado.
 
As informações revelam o que pesquisas anteriores já sinalizavam: quem estuda medicina no Brasil pertence a uma elite muito distante da realidade brasileira em que 60% das pessoas vivem com menos de um salário mínimo.
 
"Acha que os filhos dessa elite vão querer atender os muito pobres? Trabalhar em periferias ou áreas remotas? Não. Vão querer atender aonde vão ganhar mais", afirma Bráulio Luna Filho, presidente do Cremesp.
 
Outra pesquisa, publicada em 2013 pelo Instituto Oswaldo Cruz (Fiocruz), corrobora isso: de cada cem formandos em medicina no Brasil, apenas cinco desejavam trabalhar em cidades pequenas.
 
Só um quinto dos recém-formados queriam atuar em clínica geral, como nos programas de saúde da família.
 
"A maioria já tem um padrão socioeconômico elevado e quer mantê-lo. Escolhe as especialidades valorizadas pelo mercado, mais ligadas a tecnologias e não a humanidades", diz Daniel Knupp, vice-presidente da Sociedade Brasileira de Medicina de Família e Comunidade.
 
Ele informa que 70% das 1.100 vagas de residência em medicina de família ficam ociosas todos os anos por falta de interessados. As vagas equivalem a cerca de 10% do total oferecido em residência médica no país. Em países como Canadá, Holanda e Inglaterra, 40% das vagas são para clínica geral.
 
Mauro Luiz de Britto Ribeiro, vice-presidente do CFM (Conselho Federal de Medicina), diz que o médico é um profissional "como outro qualquer", atraído por leis do mercado. "Se o governo investisse em políticas que garantissem melhor remuneração e condições de trabalho, haveria mais procura."
 
Daniel Knupp concorda. "No Brasil, especialistas ganham dez vezes mais do que médicos de família. No Reino Unido, especialistas ganham no máximo 30% a mais."
 
Os estudos do Cremesp e da Fiocruz mostram que o desejo dos jovens médicos não coincide com o que determinam as novas diretrizes curriculares do ensino médico, com prazo para serem implantadas até o fim de 2018.
 
Publicadas em junho de 2014, elas sinalizam, que os médicos precisarão sair das faculdades mais preparados para atender às necessidades básicas da população do SUS.
 
Mas qual o caminho para alcançar isso? Um deles, na avaliação de Luna Filho, é ampliar o ingresso nas escolas médicas de pessoas de outros segmentos sociais.
 
Programas federais como o Prouni (Programa Universidade para Todos) e o Fies (Fundo de Financiamento Estudantil) vêm possibilitando que estudantes com menor poder aquisitivo façam cursos mais caros, como medicina, mas ainda são minoria.
 
No estudo do Cremesp, por exemplo, só 25,6% dos recém-formados foram custeados por esses programas.
 
Para Knupp, outra opção envolveria mudanças na seleção dos interessados em cursar medicina e regulação na oferta de vagas de residência para atender demandas reais do sistema de saúde.
 
 
FEMINIZAÇÃO
 
Na opinião da médica Patrícia Tempski, pesquisadora da Faculdade de Medicina da USP, é preciso um olhar especial para a feminização da medicina, que se consolidou no país a partir de 2008. Hoje, quase 60% dos novos médicos são mulheres.
 
Essa mudança influenciará o modelo de cuidados de pacientes e a organização da saúde, com vantagens e desvantagens. Entre os pontos positivos está o fato de a mulher preferir especialidades básicas, como pediatria e ginecologia, e discutir mais os tratamentos com pacientes.
 
Por outro lado, segundo Mario Scheffer, professor da USP, ela tende a fazer cargas horárias menores, ter menos vínculos de trabalho (o homem, além do consultório, tem, em média, três empregos), dificuldades em se fixar em áreas distantes e se aposenta antes.

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