quarta-feira, 13 de maio de 2015

A manipulação da imprensa na cobertura das eleições britânicas




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Carta Maior, 13/05/2015 


          

A manipulação da imprensa na cobertura das eleições britânicas

 
 
Vicenç Navarro


Houve quase um consenso entre os maiores meios de informação fazer o relato do ocorrido nas últimas eleições britânicas, apresentadas como uma vitória esmagadora do Partido Conservador, consequência do sucesso de suas políticas de austeridade, que consistem por sua vez em enormes cortes dos gastos públicos e sociais – desmantelando e privatizando o Serviço Nacional de Saúde – e uma reforma trabalhista que levou a uma deterioração importante do mercado de trabalho, com um grande aumento da precariedade e diminuição dos salários. Essa versão conta que, como consequência dessas políticas de austeridade, a economia britânica foi reanimada, com um dos crescimentos econômicos mais elevados que existem na Europa hoje, o que explica o voto tão favorável ao Partido Conservador.

Essa grande vitória do Partido Conservador é mostrada junto com o que se define como o grande colapso do Partido Trabalhista, resultado atribuído ao “esquerdismo” de seu dirigente, Ed Miliband, que se distanciou da terceira via – ou do “blairismo”, como chamam o setor do partido ligado ao ex-primeiro-ministro Tony Blair – que supostamente ganhou as eleições britânicas em três ocasiões consecutivas, aplicando suas políticas de claro corte liberal. Este argumento, a favor da terceira via é utilizado constantemente pelos grandes meios de comunicação para acentuar a importância de que os partidos trabalhistas ou social-democratas se movam para o centro político, onde se diz que está a maioria dos votos.

Essa tese ignora ou oculta detalhes que mostram o erro e/ou a falsidade de cada uma de suas suposições. Vejamos os fatos:

1. Para começar, o “grande sucesso do blairismo”: como já demonstrei anteriormente (ver meu artigo “Tony Blair e o declínio da terceira via”, publicado em Sistema, 16 de novembro de 2012), as políticas do governo de Blair foram enormemente impopulares e suas vitórias consecutivas não foram resultado do apoio popular, mas sim do sistema eleitoral britânico, que é um dos menos representativos da União Europeia hoje em dia. O Partido Trabalhista recebeu 33% dos votos em sua primeira vitória, em 1997, depois 25% em 2001 e finalmente 22% em 2005. Se o Reino Unido tivesse um sistema eleitoral proporcional, o Partido Trabalhista haveria perdido a maioria parlamentar já nas segundas eleições. O que permitiu ao partido manter uma maioria até mesmo no ano de seu colapso eleitoral, em 2005, não foi essa suposta popularidade – como defende Anthony Giddens e outros de seus ideólogos –, e sim os vícios do sistema eleitoral e a crise do Partido Conservador. Algo semelhante aconteceu, certamente, ao Partido Social Democrata alemão uma vez no governo. Todos os partidos social-democratas pertencentes à terceira via (que eram a maioria dos que governavam a União Europeia) foram derrotados eleitoralmente com uma grande perda de seu apoio eleitoral, perdendo também um grande número de militantes e simpatizantes. Longe de ser um sucesso, a terceira via foi um fracasso eleitoral de primeira magnitude em todos os países onde governou.

2. O Partido Trabalhista, nestas últimas eleições, longe de sofrer um colapso, teve um aumento na sua quantidade de votos (737.799 a mais) maior do que o Partido Conservador (607.906 a mais). Na verdade, os trabalhistas passaram de 29% em 2010 para 30,4% este ano. Apesar disso, perdeu 26 cadeiras no parlamento – passando de 258 para 232 – devido à falta de proporcionalidade do sistema eleitoral. Por sua parte, o Partido Conservador passou de 307 a 331 vagas, conseguindo maioria absoluta no Legislativo.

3. O outro partido de esquerda que se destacou neste pleito, e que se situa mais à esquerda que o Partido Trabalhista, foi o Partido Nacionalista Escocês, com um crescimento especial (foram 936.050 votos a mais) que levou a conseguir 56 cadeiras das 59 disponíveis em sua região.

4. Os votos do Partido Verde, também mais à esquerda que o Partido Trabalhista, aumentaram espetacularmente, de 285.616 em 2010 para 1.157.613 em 2015.

Somando os votos das esquerdas, o apoio total para o setor é muito superior ao dos votos das legendas de direita, sendo o seu crescimento muito maior que o do Partido Conservador. No entanto, o Partido Conservador, que contou com o apoio de pouco mais de 30% dos eleitores, terá maioria absoluta no parlamento – ou seja, mais da metade das vagas –, e apresenta essa maioria como um indicador de uma guinada à direita (que eles chamam de centro) na sociedade britânica.
 

O que aconteceu de verdade no Reino Unido e sua relevância para a Espanha

É surpreendente que um partido como o Partido Conservador, cujas políticas causaram danos substanciais especialmente nas classes populares em todas as diferentes nações que constituem o Reino Unido (Inglaterra, Escócia, País de Gales e Irlanda do Norte), não tenha diminuído, pior ainda, tenha aumentado seu apoio eleitoral. Foram duas as causas para que isso ocorresse (ver artigo “What Went Wrong For Labour In The UK Election?”, de Henning Meyer, 08 de maio de 2015, em Social Europe Journal). Uma delas foi a falta de contundência com que o Partido Trabalhista criticou a criticou a credibilidade das políticas de austeridade do governo conservador, pois ainda que se afastando do blairismo, o programa trabalhista aceitou a necessidade de seguir com a ortodoxia liberal que exige equilibrar as contas do Estado. Longe de ser “esquerdizado demais” (rótulo criado pelos grandes meios de imprensa), o programa ainda estava atado a muitos elementos de gestão econômica neoliberal, o que não ajudou a se criar uma imagem de mudança como a que se pretendia.

A segunda razão é que o Partido Conservador jogou muito bem com sua carta de “defensor da Pátria e da nação britânica”, alertando o eleitorado de que um futuro governo trabalhista que ficasse na dependência do apoio oferecido pelo Partido Nacionalista Escocês, colocaria em perigo a unidade do Reino Unido. O partido escocês, que não acentuou seu compromisso independentista durante a campanha, enfatizando, em seu lugar, um programa claramente à esquerda do apresentado pelos trabalhistas, ofereceu uma aliança à legenda de Miliband, para desbancar o Partido Conservador. Como disse na primeira parte deste artigo, somando todos os votos das esquerdas, o apoio reunido é superior ao dos conservadores, o que daria uma clara vitória à esquerda se o sistema eleitoral fosse proporcional – e não distrital, como é atualmente.

Na Espanha, é possível ver algumas semelhanças com o ocorrido na Grã-Bretanha. O Partido Popular (principal referente da direita, como os conservadores em terras britânicas), ao qual pertence o presidente Mariano Rajoy, continua sendo um dos partidos majoritários no país, embora tenha perdido um número muito elevado de seus eleitores cativos. Sabendo, como sabem, que as políticas de austeridade são bastante impopulares, os governistas adotaram a estratégia de promover a nova tese de que a austeridade é a razão para a retomada do crescimento da Espanha, o que é claramente falso, pois a recuperação é fruto de uma tímida reversão das mesmas de austeridade (com um pequeno aumento dos gastos e do número de empregos públicos este ano), além do efêmero barateamento do petróleo, a desvalorização do euro e as medidas expansivas necessárias do Banco Central Europeu.

A outra estratégia tem sido a de tentar mobilizar o seu eleitorado contra os “vermelhos” e os “separatistas”, que “ameaçam destruir a unidade da Espanha”. As políticas do ministro da Educação, José Ignacio Wert, buscam claramente provocar um atrito cada vez maior entre o catalanismo e o sentimento nacional espanhol, acentuando o conflito Catalunha-Espanha, conveniente aos nacionalistas dos dois lados. O PP sempre foi um partido minoritário na Catalunha. É normal que seu anticatalanismo esteja orientado ao resto da Espanha, para mobilizar os defensores da pátria. E com isso têm obtido bons resultados.

Por outra parte, o PSOE (Partido Socialista Operário da Espanha, de centro-esquerda) não aboliu totalmente o discurso liberal. Basta ler ou ouvir o economista José Carlos Diez, assessor do possível candidato presidencial Pedro Sánchez, para ver sua hostilidade contra o governo do Syriza (que chegou ao poder na Grécia e está tentando acabar com as medidas de austeridade imposta por uma estrutura de poder que tem como um de seus porta-vozes o político trabalhista holandês Jeroen Dijsselbloem, Presidente do Eurogrupo) ou sua oposição ferrenha às políticas redistributivas (“para distribuir renda, é preciso primeiro crescer”, sem perceber que a equação é ao contrário, para crescer é preciso distribuir, estimulando a demanda doméstica e as classes populares), entre outros indicadores de seu liberalismo. Na realidade, o crescimento do Podemos está relacionado, em grande parte, ao abandono das políticas tradicionalmente social-democratas por parte de um partido (o PSOE) que se autodefine como social-democrata.

A grande diferença entre a Espanha e o Reino Unido é que a Escócia está governada por um partido que na Espanha seria definido como de “esquerda radical”, e que obteve a grande maioria das cadeiras escocesas, enquanto a Catalunha tem um governo conservador-liberal que não consegue o apoio da maioria das classes populares, devido às políticas neoliberais (ainda mais duras que as espanholas em cortes de gastos) que não são compatíveis com os anseios dessa classe. Essa é realidade que vem sendo ocultada pelos maiores meios de informação, que também são meios de persuasão.


*Vicenç Navarro foi catedrático de Economia Aplicada na Universidade de Barcelona. Atualmente é catedrático de Ciências Políticas e Sociais da Universidade Pompeu Fabra (Barcelona, Espanha). Também é professor de Políticas Públicas na The Johns Hopkins University (Baltimore, EUA) onde dá aulas há 45 anos. Dirige o Programa de Políticas Públicas e Sociais, patrocinado conjuntamente pela Universidade Pompeu Fabra e a The Johns Hopkins University. Dirige também o Observatório Social da Espanha. Em: Público.es, 12 de maio de 2015.

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