segunda-feira, 2 de março de 2015

Limites da liberdade de expressão




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Jornal do Brasil, 02/03/2015


 

Limites da liberdade de expressão


Por Leonardo Boff
 

Os atentados terroristas no início deste ano em Paris e em Copenhague a propósito de caricaturas tidas como insultantes a Maomé, atentados perpetrados por extremistas islâmicos, trouxeram à baila a liberdade de expressão. Na França há uma verdadeira obsessão, quase histeria, na afirmação ilimitada da liberdade de expressão, legado sagrado, como dizem, do iluminismo e da natureza laica do Estado. É algo absoluto. 
         
Contrariamente e com razão afirmou o bispo profético Dom Pedro Casaldáliga:“nada há de absoluto no mundo a nã
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ser Deus e a fome; tudo o mais é relativo e limitado”.

Estendendo o teorema de Gödel para além da matemática, pode-se afirmar  insuperável incompletude e limitação de tudo que existe. Por que deverá ser diferente com a liberdade de expressão? Ela não escapa dos limites que devem ser reconhecidos, caso contrário daremos livre curso ao vale tudo e  às “vendettas”. A ideia francesa da liberdade de expressão supõe uma ilimitada tolerância: há que se tolerar tudo. Contrariamente afirmamos: toda tolerância possui sempre um limite ético que impede o “vale tudo” e o desrespeito aos outros que corrói as relações pessoais e sociais.            

Todo exercício da liberdade que implica ofender o outro, ameaçar a vida das pessoas e até de todo um  ecossistema (desmatamento indiscriminado)  e violar o que é tido como sagrado, não deve ter lugar numa sociedade que se quer minimamente humana. Ora, há franceses (nem todos) que querem a liberdade de expressão, imune de qualquer restrição. O resultado dessa pretensão foi tristemente constatado: se a liberdade é total então deve valer para todos e em todas as circunstâncias. É o que pensaram, certamente, (não eu) aqueles terroristas que assassinaram os cartunistas do Charlie Hebdo e outras pessoas em Copenhague. Em nome desta mesma liberdade ilimitada. Pouco vale alegar que há o recurso à lei. Mas um mal uma vez feito, nem sempre é reparável e deixa marcas indeléveis.
         
A liberdade sem limite é absurda e não há como defendê-la filosoficamente. Para contrabalançar os exageros da liberdade costuma-se  ouvir a frase, tida quase como um princípio: “a minha liberdade acaba onde começa a tua”.   
               
Nunca vi alguém alguém questionar esta afirmação. Mas precisamos fazê-lo. Pensando nos pressupostos subjacentes, devemos submetê-la a uma crítica mais atenta. Trata-se da típica liberdade do  liberalismo como filosofia política.  
       
Expliquemos melhor: com a derrocada do socialismo realmente existente se perderam algumas virtudes que ele, bem ou mal, havia suscitado, como, certa feita, o reconheceu o Papa João Paulo II:  o sentido do internacionalismo, a importância da solidariedade e a prevalência do social sobre o individual.         

Com a ascensão ao poder de Thatcher e de Reagan voltaram furiosamente os ideais liberais e a cultura capitalista sem o contraponto socialista: a exaltação do indivíduo, a supremacia da propriedade privada, a democracia só delegatícia, por isso reduzida e a liberdade dos mercados. As consequências são visíveis: atualmente  há muito menos solidariedade internacional e preocupação com as mudanças em prol dos pobres do mundo.  Vigora perversa concorrência e falta de solidariedade que elimina os fracos.         

É neste pano de fundo  que deve ser entendida a frase “a minha liberdade acaba onde começa a tua”. Trata-se de uma compreensão individualista, do eu sozinho, separado da sociedade. É a vontade de ver-se livre  do outro e não de exercer a liberdade com o outro.       
  
Pensa-se: para que a tua liberdade comece, a minha tem que acabar. Ou para que tu comeces a ser livre, eu devo deixar de sê-lo. Consequentemente, se a liberdade do outro não começa, por qualquer razão que seja, significa então que a minha liberdade não conhece limites, se expande como quiser porque não encontra limites  na liberdade do outro. Ocupa todos os espaços e inaugura o império do egoismo. A liberdade do outro se transforma em liberdade contra o outro.    
     
Essa compreensão sub-jaz ao conceito vigente de soberania territorial dos estados nacionais. Até os limites do outro estado, ela é absoluta. Para além desses  limites, ela des
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parece. A consequência é que a solidariedade não tem mais lugar. Não se promove o diálogo, a negociação, buscando convergências e o bem comum supranacional como se comprova claramente nos vários Encontros da ONU sobre o aquecimento global. Ninguém quer renunciar a nada. Por isso não se chega a nenhum consenso, enquanto o aquecimento global sobe  dia a dia.        

Quando há um conflito entre dois países normalmente se usa o caminho diplomático do diálogo. Frustrado este, logo se pensa na utilização da força, como meio para resolver o conflito. A soberania de um esmaga a soberania do outro.  
       
Ultimamente, dada a destrutividade da guerra, surgiu a teoria do ganha-ganha para superar o ganha-perde. Estabelece-se o diálogo. Todos se mostram flexíveis e dispostos a concessões e acertos. Todos saem ganhando, mantendo a liberdade e a soberania de cada país.

Por isso, a frase correta é esta: a minha liberdade somente começa quando começa também a tua. É  o perene legado deixado por Paulo Freire: jamais seremos livres sozinhos; só seremos livres juntos. Minha liberdade cresce na medida em que cresce também a tua e conjuntamente gestamos uma sociedade de cidadãos livres e libertos.      
   
Por detrás desta compreensão vigora a ideia de que  ninguém é uma ilha. Somos seres de convivência. Todos somos pontes que nos ligam uns aos outros. Por isso ninguém é sem os outros e livre dos outros. Todos são chamados a serem livres  com os outros e para os outros. Como bem deixou escrito Che Gevara em seu Diário: “somente serei verdadeiramente livre quando o último homem tiver conquistado também a sua liberdade”.


*Leonardo Boff é colunista do JBOnline e escreveu: Convivência, Respeito e Tolerância, Vozes, Petrópolis 2006.

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