terça-feira, 24 de março de 2015

CASO ALBERTO NISMAN: Intrigas, mentiras e o lugar da informação

 
 
 
 Terça-Feira, 24 de Março de 2015




CASO ALBERTO NISMAN
Intrigas, mentiras e o lugar da informação



Por Ângela Carrato




Nos últimos dois meses, os principais veículos de comunicação da Argentina, tendo à frente os diários Clarín e La Nación, não mediram esforços para sustentar manchetes contra o governo de Cristina Kirchner envolvendo a morte do procurador federal Alberto Nisman. Encontrado com uma bala na têmpora direita em seu apartamento, em 18/01, véspera da data em que iria apresentar relatório final sobre o atentado à Associação Mutual Israelita Argentina (Amia), acontecido 20 anos antes, o caso passou a ser apresentado como “o cadáver” que iria por fim ao governo.

No relatório, Nisman, mesmo sem qualquer prova, denunciava a presidente Cristina Kirchner, seu chanceler, Héctor Timerman, e outras pessoas do primeiro escalão, por terem feito um acordo que previa a venda de grãos aos iranianos e o fornecimento de petróleo iraniano à Argentina, em troca de que o governo argentino “acobertasse”‘ acusados pelo atentado no qual 85 pessoas morreram e centenas ficaram feridas. A acusação serviu para que setores oposicionistas, capitaneados pela mídia, passassem a utilizar pesada artilharia contra a Casa Rosada.

Na primeira semana de fevereiro, o Clarín subiu tanto o tom que, a partir de um sofisma, acusou a presidente de “assassina”. O jornal considerou que se era responsabilidade do governo garantir a segurança do procurador e se isso não aconteceu, a presidente era responsável, portanto assassina. O fato mereceu do chefe de gabinete da presidente, Jorge Capitanich, a foto que ganhou manchetes em todo mundo: ele rasgando algumas páginas daquele diário que, como qualquer argentino sabe, é visceralmente de oposição ao kircherismo.
 
 
 
 
A partir de então, o assunto começou a dividir as opiniões, pela ausência de indícios de que Nisman pudesse estar certo e também porque as investigações ganharam novo rumo. Pouco depois da “Marcha do Silêncio”, oficialmente convocada por procuradores colegas de Nisman, para lembrar um mês de sua morte, em 18/02, que reuniu 50 mil pessoas (número que a mídia tentou inflar para 500 mil), informações inconvenientes aos oposicionistas, em meio a muitas cortinas de fumaça, começaram a vir a público.

A principal delas, praticamente ignorada pelo Clarín, diz respeito a uma conta conjunta não declarada que Nisman mantinha nos Estados Unidos, com o técnico em informática Diego Lagomarsino. Este técnico foi a última pessoa a vê-lo com vida e também quem lhe emprestou a arma calibre 22 encontrada junto ao seu cadáver. Além da descoberta de que Lagomarsino é, na realidade, funcionário do serviço de informações argentino, contratado irregularmente por Nisman, não consta que fossem amigos a ponto de possuírem conta conjunta no exterior. Situação no mínimo estranha que foi noticiada apenas pelo diário Página/12 e pela TV Nacional, a emissora pública argentina.

Outra contradição, propositalmente ignorada pelo Clarín, diz respeito às disputas dentro do serviço de informações. O setor está longe da unidade, com uma parte expressiva leal ao governo e outra, menor, possivelmente ainda com vínculos e vícios dos tempos da ditadura. Esta parte está entre os suspeitos de terem interesse na morte de Nisman, diante do potencial de desgaste que poderia representar, em ano eleitoral, para um governo que vem sendo implacável na denúncia e criminalização de antigos torturadores.

Para continuarem ignorando esta possibilidade, Clarín e La Nación não deram importância a outras declarações de Lagomarsino segundo as quais Nisman não só havia dispensado sua segurança pessoal, como pediu que lhe arranjasse uma arma para defender suas chicas. Como suas filhas, duas adolescentes, estavam no exterior e ele próprio dispensara proteção oficial, a quem temia?


Bênção e desculpas

Mesmo subtraindo tais informações aos argentinos, Clarín e La Nación não conseguiram evitar que fatos novos, dando conta da estreita relação e subserviência de Nisman aos interesses norte-americanos, passassem a ser conhecidos. Veiculado por Página 12, e também disponível no livro do jornalista argentino Santiago O’Donnell, Politileaks (Editora Sudamericana, 2014), outro perfil de Nisman, diferente do herói que morre (ou é morto?) em prol de uma boa causa, começou a vir a público.

À venda em qualquer livraria de Buenos Aires, o livro de O’Donnell, a partir dos segredos revelados pelo WikiLeaks, dedica um de seus 22 verbetes a Nisman. Nele, o procurador aparece como uma pessoa fraca, medrosa e que antes de tomar decisões importantes a respeito de seu trabalho, ia pedir benção à Embaixada dos Estados Unidos. Os e-mails e telegramas disponibilizados pelo WikiLeaks mostram que o governo dos Estados Unidos “impulsó y alentó la investigación de los sospechos iraníes acusados de haber cometido el atentado en 1994”. Mais ainda, o livro revela que diversos funcionários norte-americanos mantiveram numerosos contatos com Nisman.

Nestes encontros, insistiram que o promotor deveria deixar de lado outras pistas e concentrar-se apenas na iraniana, com Nisman sempre se mostrando solicito diante destes pedidos e conselhos. A título de exemplo, em 2006, com três semanas de antecedência em relação à divulgação oficial, Nisman informou à Embaixada dos Estados Unidos que o juiz Rodolfo Canicoba Corral iria processar os suspeitos iranianos. Pela função que ocupava, não poderia ter antecipado esta informação para outro governo. Pior ainda. Em maio de 2008, Nisman telefonou tantas vezes para a embaixada dos Estados Unidos para desculpar-se por não ter avisado sobre o pedido de prisão que havia feito para o ex-presidente Carlos Menem que “a sede diplomática escribió tres cables distintos dando cuenta de las sucesivas ampliaciones del pedido de desculpas” (O’Donnell, p.260).

Quando o assunto já dava sinais de esfriar na Argentina, eis que a revista brasileira Veja publica, em 14/03, matéria sob o título de “Chavistas confirmam conspiração denunciada por Nisman”. A matéria (se é que pode ser assim chamada) bem ao estilo do jornalismo marrom que Veja tem praticado, não dá nomes às fontes. É, no entanto, farta em adjetivos e insinuações, ao mesmo tempo em que tentar criar uma conexão entre a morte de Nisman, a presidente argentina e supostos interesses do governo da Venezuela ligados à obtenção de tecnologia nuclear.


“Cheiro” de intriga

A matéria, não assinada, parece redigida por alguém com mente criativa e forte inspiração em livros e filmes de espionagem. Caso contrário, como aceitar que uma revista, que em outros tempos já foi séria, possa publicar algo que cheira às intrigas plantadas na mídia pelo serviço de inteligência dos Estados Unidos, magistralmente reveladas pelo jornalista Tim Weiner?

Em Legado de Cinzas (Record, 2008), Weiner traça a história da CIA desde seu começo em 1945, antes mesmo de terminada a Segunda Guerra Mundial, até meados de 2006, quando o livro foi concluído. Vencedor do prêmio Pulitzer, o autor, que durante 20 anos cobriu as atividades da CIA para o jornal The New York Times, explica que uma das especialidades dos dirigentes da CIA sempre foi cultivar editores, colunistas de jornais, homens de TV e rádio, além de seduzir congressistas e políticos, dentro e fora dos Estados Unidos. Como escreve Weiner, referindo-se a Allen Dulles, um dos mais festejados ex-dirigentes da CIA...

“Dulles mantinha contato estreito com os homens que dirigiam o New York Times, o Washington Post e as principais revistas semanais da nação. Podia pegar o telefone e editar um furo de reportagem, assegurar-se de que um correspondente estrangeiro irritante fosse afastado, ou contratar os serviços de homens como o chefe do escritório da Time em Berlim e o correspondente da Newsweek em Tóquio. Era costume de Dulles plantar histórias na imprensa” (Weiner, p.99).

Ao que tudo indica, Veja, depois do festival de mentiras que tem pregado aos seus leitores em matéria de política nacional, dedica-se agora a ações de igual porte na América do Sul, coincidentemente plantando notícias que envolvem dois governos com posturas críticas aos Estados Unidos: Venezuela e Argentina. Valendo-se de informações atribuídas a venezuelanos exilados nos Estados Unidos, a semanal da editora Abril, acusa Cristina Kirchner de ter sua campanha eleitoral em 2007 financiada pelo Irã em troca da impunidade para os terroristas que atacaram a entidade judia e apoio ao programa nuclear iraniano. Mais ainda, numa salada temática que deixaria perplexos autores de best sellers de espionagem como Ian Fleming e John Le Carré, reúne ingredientes tão mirabolantes como armas nucleares, conspirações, segredos, venezuelanos, argentinos e iranianos.

Veja não deixou, sequer, de adicionar, como manda o figurino, pitadas de pimenta à estória, envolvendo a então embaixadora da Argentina na Venezuela, Nilda Garré, apresentando-a como “amiga íntima” do falecido presidente venezuelano, Hugo Chávez, com quem teria vivido cenas tórridas à la 50 tons de cinza ao mesmo tempo em que intermediava assuntos relativos a questões nucleares entre os dois países. Garré, que é a atual representante da Argentina na Organização dos Estados Americanos (OEA), reagiu tão logo tomou conhecimento da publicação.


Namoradas e verba pública

Em carta enviada à Veja, exigiu direito de resposta, em meio impresso e digital, com o mesmo espaço e destaque dado ao assunto pela revista. Citando a Constituição brasileira e também o que determina a OEA sobre liberdade de expressão, dá mostras que pretende ir fundo para garantir seus direitos. Com isso, Veja, que já está às voltas com processos no Brasil envolvendo calúnia, difamação e manipulação dos fatos, também pode vir a ser processada no exterior.

Aqui, a resposta de Garré foi publicada, por enquanto, apenas pelo site Carta Maior (www.cartamaior.com.br). Na Argentina, mereceu destaque na edição de domingo (22/03) do Página/12 que, em artigo assinado por Horácio Verbitsky, faz um apanhado das mais recentes informações sobre o caso Nisman. Informações que, curiosamente, Veja e quase toda a mídia brasileira fazem questão de continuar ignorando.

Nem Veja nem jornais como O Globo e Folha de S.Paulo publicaram uma linha sequer sobre o fato de que as apurações sobre a morte de Nisman incluíram, nas últimas semanas, informações que os adversários de Cristina Kirchner preferiam que jamais fossem divulgadas. Imagens recolhidas no celular do promotor o mostram em discoteca cercado por namoradas. Mais ainda: ele pagava contas em motéis e viagens em primeira classe para si e suas namoradas com verba pública. Verba que custeava igualmente a vida que mantinha, viajando com frequência para locais paradisíacos do Caribe e morando em um luxuoso apartamento em um dos pontos mais nobres de Buenos Aires, o bairro de Puerto Madero. Detalhe: a maioria das viagens se deu em períodos de trabalho, quando deveria estar cuidando das investigações do atentado à Amia.
 
 
 
 
Depois destas revelações, o centro de Buenos Aires amanheceu, na semana retrasada, com centenas de cartazes ironizando a “Marcha do Silêncio” e a tentativa dos oposicionistas à Casa Rosada de compararem a morte do procurador ao atentado que sofreu a revista Charlie Hebdo, em Paris. Sob a foto de Nisman com as namoradas em uma festa se pode se ler, nestes cartazes, a pergunta: “Je suis Nisman?” Parte da população e também familiares das vítimas do atentado à Amia têm dado mostras de insatisfação com a cobertura tendenciosa realizada pela maior parte da mídia argentina. Tanto que as “Marchas do Silêncio” estão visivelmente perdendo adeptos. A mais recente reuniu pouco mais de 100 pessoas. Mesmo assim, a mídia, Clarín à frente, não demonstra intenção de render-se aos fatos.


Twitaço mundial

A artilharia do Clarín contra o governo de Cristina Kirchner mantém-se firme, em que pese a recente desmoralização de que a publicação foi alvo. Depois de anos denunciando corrupção nos governos Kirchner (Néstor e Cristina), foram atingidos em cheio pelo escândalo das contas suíças no banco HSBC (SwissLeaks).

Neste caso, não há como culpar o governo argentino ou qualquer outro “bolivariano” pelas informações, já que elas foram fruto do trabalho de um Consórcio Internacional de Jornalistas Investigativos (ICIJ, na sigla em inglês) com sede em Londres. O consórcio reúne profissionais de 65 países, que se debruçaram nos dados obtidos pelo WikiLeaks, e foram divulgados em primeira mão pelos jornais The Guardian (inglês) e Le Monde (francês). Segundo estes jornais, este pode ser o maior escândalo financeiro internacional de todos os tempos.

Este, aliás, é um ponto que parece unir a mídia argentina à brasileira, uma vez que aqui também os dirigentes do grupo Abril, da Folha de S.Paulo e a viúva de Roberto Marinho, entre outros 19 “barões” da mídia, igualmente figuram na lista dos correntistas da agência suíça do HSBC. Nos próximos dias deve começar a funcionar no Senado uma Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) para investigar o assunto, que envolve também políticos, jornalistas, empresários e artistas brasileiros.

Talvez por isso, mesmo contando com correspondentes em Buenos Aires, O Globo e Folha de S.Paulo têm publicado apenas parte da estória envolvendo os desdobramentos do “caso Nisman”. Somente informações e aspectos contrários aos atuais governos da Argentina e da Venezuela são divulgados, contribuindo para gerar confusão e infringir medo às populações destes países e também à própria população brasileira.

É importante observar, ainda, que estas pseudoinformações contribuem para dar contornos de realidade à postura do presidente norte-americano, Barack Obama, que, em 09/03, através de decreto, declarou a Venezuela como sendo uma “ameaça à segurança dos Estados Unidos”. Sob o argumento que o governo de Nicolás Maduro viola direitos humanos de seus opositores e está envolvido em corrupção, Obama pretendia complicar a situação da Venezuela e de alguns países da América do Sul.

Só que o tiro ameaça sair pela culatra. Além do apoio dos países da Unasul à Venezuela, estão chegado de todas as partes mensagens de solidariedade ao governo de Maduro e exigindo que o ocupante da Casa Branca mude de posição, com o assunto se transformando no tema do maior twitaço mundial já registrado. Em pouco mais de uma semana, dois milhões e 500 mil assinaturas contra o decreto de Obama foram coletadas e a meta dos organizadores do protesto virtual é chegar a 10 milhões de assinaturas. Diante de um número tão expressivo, será que, finalmente, intrigas e mentiras vão dar lugar à informação?



Ângela Carrato é jornalista e professora do Departamento de Comunicação Social da UFMG. Este artigo foi publicado no blog Estação Liberdade
 


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