sexta-feira, 27 de junho de 2014

O direito fundamental de José Genoíno



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27/06/2014




O DIREITO FUNDAMENTAL DE JOSÉ GENOINO​


 


Por Paulo Moreira Leite *




A decisão do Supremo Tribunal Federal de negar a prisão domiciliar a José Genoíno merece uma nova reflexão.
Ao negar o pedido, o relator Luiz Roberto Barroso afirmou: “Sou solidario a ele. É um sujeito hipertenso, que está em condições adversas do cárcere. Mas ele não está em circunstâncias mais graves ou menos piores do que os outros.”
Em apoio ao relator, o decano Celso de Mello lembrou que segundo informações da Vara de Execuções Penais do Distrito Federal, cumprem pena 306 hipertensos, 16 cardiopatas, 10 condenados com câncer, 56 com diabetes e 65 com Aids. Nada justifica o tratamento diferenciado".
A discussão colocada por dois dos mais respeitados e cultos integrante da Corte tem grande relevância. Argumentou-se que, em nome da igualdade de tratamento, seria errado atender ao pedido de José Genoíno. Gostaria de debater o argumento da igualdade.
Vivemos num país onde a igualdade entre todos os cidadãos se afirma como um valor essencial da democracia e da Constituição. É bom que seja assim. É um caminho para vencer nossa desigualdade estrutural, matriz de grande parte dos problemas brasileiros.
A Constituição reconhece, também, que os indivíduos têm direitos fundamentais. Um deles é o direito à vida e a à integridade.
Não é porque ocorrem milhares de assassinatos, todos os dias, que uma pessoa não tenha o direito de cobrar proteção do Estado no momento em que lhe apontam um revólver.  
Da mesma forma, não é porque nossos hospitais públicos se apresentem, muitas vezes, numa situação global de calamidade que o cidadão comum não tenha o direito de exigir uma atendimento decente.
E é porque entende que esses direitos fundamentais à vida devem ser respeitados que o judiciário, muitas vezes, obriga o Estado a arcar  a com despesas de tratamentos médicos caríssimos, que nem a rede pública nem  os planos privados – mesmo caríssimos – têm disposição para pagar.
A simples permissão para a venda de planos privados de saúde - cujos custos são deduzidos do imposto de renda, representando uma forma de subsídio - é uma forma de reconhecer esse direito fundamental à vida. 
O direito a vida se desdobra, em nossa Constituição, no artigo 6, que diz que a saúde é um direito de todos e um dever do Estado.
Você já viu aonde quero chegar e é isso mesmo.
O fato de mais de 400 prisioneiros sob guarda do sistema prisional do Distrito Federal padecerem de doenças graves, sendo tratados internamente, nas condições que todos podem imaginar, em nada diminui o direito fundamental de Genoíno a que se assegure o melhor para sua saúde. Não há como negar que o melhor para ele é fazer o tratamento em casa.
Mesmo porque, como lembrou o procurador Rodrigo Janot, na Papuda não existe plantão noturno nem nos finais de semana - e até uma criança sabe que problemas cardíacos não ocorrem com hora marcada. Se o estresse ajuda a agradar a condição de um cardiopta, é fácil imaginar qual ambiente mais estressante.  
Essa situação em nada diminuía, também, a necessidade do Supremo dar resposta a este caso específico,  que lhe coube analisar na sessão de quarta-feira passada. Embora se possa considerar possível e até necessário que o STF debatesse, naquela mesma tarde, mesmo em véspera de seu recesso, formas de avaliar o atendimento aos demais 400 presos, todos com os mesmos direitos de Genoíno, havia uma questão específica a ser tratada ali.
Entre todos os adoentados da Papuda, era o único sentenciado pelo STF, o que confere um elemento particular de responsabilidade aos juízes encarregados de julgar se deveria ser mantido na prisão ou se poderia tratar-se em casa. Os outros adoentados da Papuda não são ouvidos no STF. 
Ao contrário do que se disse durante a maior parte do julgamento, muitos ministros sublinharam a versão de que o pedido de Genoíno se baseava em laudos de médicos particulares, onde se definia sua condição de paciente “grave,” enquanto um documento oficial, de uma junta médica formada por decisão de Joaquim Barbosa, negava essa condição.
Coube a Ricardo Lewandovski, num momento em que a votação já havia ocorrido, lembrar que o Instituto Médico Legal – o único autorizado a atestar a causa da morte de uma pessoa – definiu a cardiopatia de Genoíno como “grave.” O mesmo faz a versão completa da junta médica da Câmara, assinada pelos doutores do Poder Legislativo.
Ao levantar o argumento da igualdade, empregou-se um valor correto numa situação errada.
Se tivesse acolhido o pedido, o  STF teria, inclusive, aberto um precedente para que outros casos, de outros prisioneiros, menos iguais do que o ex-deputado, ex-presidente do PT e político de prestígio, recebessem mais atenção. O caso de Genoíno teria servido, assim, para melhorar atendimento a saúde dos prisioneiros, da Papuda e de fora dali. Ao recusar o pedido, a mensagem é oposta. Todos os 306 presos hipertensos, 16 cardiopatas, 10 condenados com câncer, 56 com diabetes e 65 com Aids serão mantidos na situação em que se encontram.
De qual valor estamos falando, mesmo?
Estamos falando de direitos humanos – outro nome de direitos fundamentais.  
Num artigo de 1987, quando os brasileiros começavam a recuperar direitos democráticos, o governador Franco Montoro promoveu, em São Paulo, uma política de defesa de direitos humanos junto a polícia estadual, a PM e a Polícia Civil, num esforço para proibir a sobrevivência de práticas ilegais e vergonhosas. Nem se falava, na época, da necessidade de que tivessem um atendimento médico decente. O debate sobre condições de vida no cárcere era visto como coisa de intelectual da USP. A questão, na época, era tolerar ou proibir a tortura.
Analisando o surgimento de um conservadorismo extremista que se insurgia contra todo esforço para garantir os direitos fundamentais de pessoas encarceradas, o sociólogo Antonio Flavio Pierucci escreveu num artigo memorável (“As bases da Nova Direita”) publicado na revista Estudos Ceprab:
“Querer vê-los tendo arrepios é pronunciar as palavras direitos humanos ‘O que o senhor ou a senhora acha dos direitos humanos? É uma política com a qual a senhora concorda?” Diante de uma pergunta dessas, eles e elas se inflamam, se enfurecem. É interessante – e decepcionante – que a associação primeira do sintagma direitos humanos seja com a ideia de “mordomia para presos.’
Entrevistando uma advogada no bairro da Mooca, 40 anos, Pierucci ouviu o seguinte argumento:
“O pior de tudo é que houve uma inversão de valores. O bandido, hoje em dia, é endeusado, embora seja um assassino, estuprador, seja o diabo. Então ele precisa tomar o banhozinho de sol. A comida não está boa? Precisa de champagne francesa. Quer dizer: ele efetivamente não está sendo punido. Ele está vivendo às nossas custas.”


​*Diretor da Sucursal da ISTOÉ em Brasília, é autor de "A Outra História do Mensalão".

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