sábado, 14 de junho de 2014

A elite reserva ao país o mesmo lugar exortado à Presidenta

Carta Maior, 14/06/2014


A elite reserva ao país o mesmo lugar exortado à Presidenta


 


Por Saul Leblon



Quando a elite de uma sociedade se reúne em um estádio de futebol e a sua manifestação mais singular é um coro de ofensas de baixo calão, quem é o principal atingido: o alvo ou o emissor?
Vaias e palavrões são inerentes às disputas futebolísticas. Fazem parte do espetáculo, assim  como o frango e o gol de placa. A passagem de autoridades por estádios nunca foi impune.

O que se assistiu no Itaquerão, porém, no jogo inaugural da Copa, entre Brasil e Croácia, não teve nada a ver com o futebol ou deboche, mas com a disputa virulenta em curso  pelo comando da história brasileira.

Sem fazer parte da coreografia oficial o que aflorou ali foi a mais autêntica expressão cultural de um lado desse conflito, nunca antes assumido assim de forma tão desinibida e ilustrativa.

Encorajado pelo anonimato, o gado PO (puro de origem) mostrou o pé duro dos seus valores.

Dos camarotes vips um jogral raivoso e descontextualizado despejou sua bagagem de refinamento e boas maneiras sobre uma Presidenta da República em missão oficial.

Por quatro vezes, os sentimentos de uma elite ressentida contra aqueles que afrontam a afável, convergente e impoluta lógica de sociedade que vem construindo aqui há mais de cinco séculos, afloraram durante o jogo.

Foi assim que essa gente viajada, de hábitos cosmopolitas, que se envergonha de um Brasil no qual recusa a enxergar o próprio espelho, ofereceu a um bilhão de pessoas conectadas à Copa em 200 países uma síntese dos termos elevados com os quais tem pautado a disputa política  no país.

Que Aécio & Eduardo tenham se esponjado nessa manifestação dá o peso e a medida do espaço que desejam ocupar no espectro da sociedade brasileira.

Dias antes, o  ex-Presidente Lula havia comentado que nem a burguesia venezuelana atingira contra Chávez o grau de desrespeito e preconceito observado aqui contra a Presidenta Dilma.

Houve quem enxergasse nessas palavras uma carga de retórica eleitoral.

A cerimônia da 5ª feira cuidou de devolver pertinência  à observação.

A formação virtuosa da infância,  o compromisso com a civilização, a sorte do desenvolvimento  e  os destinos da sociedade há muito deixaram de interessar à elite brasileira.

A novidade do coro contra  Dilma é refletir  o desejo  cada vez mais explícito  de mandar o país ao mesmo lugar exortado  à Presidenta.

Ou não será esse o propósito estratégico do camarote  vip ao apregoar o descolamento da sociedade brasileira de uma vez por todas, acoplando-a à grande cloaca mundial de um capitalismo sem peias, onde  se processa  a restauração neoliberal pós-2008?

Nesse imenso biodigestor de direitos e desmanche do Estado acumula-se o adubo  no qual floresce  a alta finança desregulada, que tem nos endinheirados brasileiros  os detentores da 4ª maior fortuna do planeta evadida em paraísos fiscais.

Estudos da  The Price of Offshore Revisited,  coordenados pelo ex-economista-chefe da McKinsey, James Henry, revelam que os brasileiros muito ricos – que se envergonham de um governo corrupto-  possuíam, até 2010, cerca de US$ 520 bilhões  em paraísos fiscais.

O passaporte definitivo  para esse  ‘novo normal’ sistêmico requer a vitória, em outubro, das candidaturas que carregam no DNA o mesmo pedigree da turma que deu uma pala na festa de abertura da Copa. Não propriamente contra Dilma, mas contra o que ela simboliza: a tentativa de se construir por aqui um Estado social que assegure aos  sem riqueza os mesmos direitos daqueles que enxergam no espaço público  um  mero apêndice  do interesse plutocrático. 

A expressão ‘vale tudo’ descreve com fidelidade o que tem sido e será, cada vez mais, o bombardeio   para convencer o imaginário brasileiro  das virtudes intrínsecas  à troca do ‘populismo’  pelo estado de exceção de direitos e conquistas sociais, em benefício dos livres mercados.

A mídia está aí para isso, como se viu pela cobertura dos fatos da última 5ª feira.

Trata-se de saber em que medida o discernimento social, condicionado por uma esférica máquina de difusão dos interesses vips,  saberá distinguir um caminho que desvie a nação do futuro metafórico reservado a ela nos planos, agora explicitados, de sua elite.

A indigência do espírito público dos endinheirados brasileiros, reconheça-se, não é nova. Mas se supera.

O antropólogo Darcy Ribeiro foi  um legista obcecado dos seus contornos e consequências para a formação do país, a sorte de sua gente e a qualidade do seu desenvolvimento.

Em um texto de  1986, ‘Sobre o óbvio – Ensaios Insólitos’, o criador da Universidade de Brasília, e chefe da Casa Civil de Jango, iluminou os traços dessa rosca descendente, confirmada  28 anos depois, em exibição mundial,  na abertura da Copa de 2014.

"Dois fatos que ficaram ululantemente óbvios. Primeiro, que não é nas qualidades ou defeitos do povo que está a razão do nosso atraso, mas nas características de nossas classes dominantes, no seu setor dirigente e, inclusive, no seu segmento intelectual. Segundo, que nossa velha classe dominante tem sido altamente capaz na formulação e na execução de projeto de sociedade que melhor corresponde a seus interesses. Só que este projeto para ser implantado e mantido precisa de um povo faminto, xucro e feio. Nunca se viu, em outra parte, ricos tão capacitados para gerar e desfrutar riquezas, e para subjugar o povo faminto no trabalho, como os nossos senhores empresários, doutores e comandantes. Quase sempre cordiais uns para com os outros, sempre duros e implacáveis para com subalternos, e insaciáveis na apropriação dos frutos do trabalho alheio. Eles tramam e retramam, há séculos, a malha estreita dentro da qual cresce, deformado, o povo brasileiro (...) porque só assim a velha classe pode manter, sem sobressaltos, este tipo de prosperidade de que ela desfruta, uma prosperidade jamais generalizável aos que a produzem com o seu trabalho.

A primeira evidência a ressaltar é que nossa classe dominante conseguiu estruturar o Brasil como uma sociedade de economia extraordinariamente próspera. Por muito tempo se pensou que éramos e somos um país pobre, no passado e agora. Pois não é verdade. Esta é uma falsa obviedade. Éramos e somos riquíssimos! A renda per capita dos escravos de Pernambuco, da Bahia e de Minas Gerais – eles duravam em média uns cinco anos no trabalho – mas a renda per capita dos nossos escravos era, então, a mais alta do mundo. Nenhum trabalhador, naqueles séculos, na Europa ou na Ásia, rendia em libras – que eram os dólares da época – como um escravo trabalhando num engenho no Recife; ou lavrando ouro em Minas Gerais; ou, depois, um escravo, ou mesmo um imigrante italiano, trabalhando num cafezal em São Paulo. Aqueles empreendimentos foram um sucesso formidável. Geraram além de um PIB prodigioso, uma renda per capita admirável. Então, como agora, para uso e gozo de nossa sábia classe dominante. A verdade verdadeira é que, aqui no Brasil, se inventou um modelo de economia altamente próspera, mas de prosperidade pura. Quer dizer, livre de quaisquer comprometimentos sentimentais. A verdade, repito, é que nós, brasileiros, inventamos e fundamos um sistema social perfeito para os que estão do lado de cima da vida.

O valor da exportação brasileira no século XVII foi maior que o da exportação inglesa no mesmo período. O produto mais nobre da época era o açúcar. Depois, o produto mais rendoso do mundo foi o ouro de Minas Gerais que multiplicou várias vezes a quantidade de ouro existente no mundo. Também, então, reinou para os ricos uma prosperidade imensa. O café, por sua vez, foi o produto mais importante do mercado mundial até 1913, e nós desfrutamos, por longo tempo, o monopólio dele. Nestes três casos, que correspondem a conjunturas quase seculares, nós tivemos e desfrutamos uma prosperidade enorme. Depois, por algumas décadas, a borracha e o cacau deram também surtos invejáveis de prosperidade que enriqueceram e dignificaram as camadas proprietárias e dirigentes de diversas regiões. O importante a assinalar é que, modéstia à parte, aqui no Brasil se tinha inventado ou ressuscitado uma economia especialíssima, fundada num sistema de trabalho que, compelindo o povo a produzir, o que ele não consumia – produzir para exportar – permitia gerar uma prosperidade não generosa, ainda que propensa desde então, a uma redistribuição preterida.

Enquanto isso se fez debaixo dos sólidos estatutos da escravidão, não houve problema. Depois, porém, o povo trabalhador começou a dar trabalho, porque tinha de ser convencido na lei ou na marra, de que seu reino não era para agora, que ele verdadeiramente não podia nem precisava comer hoje. Porém o que ele não come hoje, comerá acrescido amanhã. Porque só acumulando agora, sem nada desperdiçar comendo, se poderá progredir amanhã e sempre. O povão, hoje como ontem, sempre andou muito desconfiado de que jamais comerá depois de amanhã o feijão que deixou de comer anteontem. Mas as classes dominantes e seus competentes auxiliares, aí estão para convencer a todos – com pesquisas, programas e promoções – de que o importante é exportar, de que é indispensável e patriótico ter paciência, esperem um pouco, não sejam imediatistas. O bolo precisa crescer; sem um bolo maior – nos dizem o Delfim lá de Paris e o daqui – sem um bolo acrescido, este país estará perdido. É preciso um bolo respeitável, é indispensável uma poupança ponderável, uma acumulação milagrosa para que depois se faça, amanhã, prodigiosamente, a distribuição.
      
A classe dominante brasileira inscreve na Lei de Terras um juízo muito simples: a forma normal de obtenção da prioridade é a compra. Se você quer ser proprietário, deve comprar suas terras do Estado ou de quem quer que seja, que as possua a título legítimo. Comprar! É certo que estabelece generosamente uma exceção cartorial: o chamado usucapião. Se você puder provar, diante do escrivão competente, que ocupou continuadamente, por 10 ou 20 anos, um pedaço de terra, talvez consiga que o cartório o registre como de sua propriedade legítima.

Como nenhum caboclo vai encontrar esse cartório, quase ninguém registrou jamais terra nenhuma por esta via. Em consequência, a boa terra não se dispersou e todas as terras alcançadas pelas fronteiras da civilização, foram competentemente apropriadas pelos antigos proprietários que, aquinhoados, puderam fazer de seus filhos e netos outros tantos fazendeiros latifundiários. Foi assim, brilhantemente, que a nossa classe dominante conseguiu duas coisas básicas: se assegurou a propriedade monopolística da terra para suas empresas agrárias, e assegurou que a população trabalharia docilmente para ela, porque só podia sair de uma fazenda para cair em outra fazenda igual, uma vez que em lugar nenhum conseguiria terras para ocupar e fazer suas pelo trabalho. A classe dominante norte-americana, menos previdente e quiçá mais ingênua, estabeleceu que a forma normal de obtenção de propriedade rural era a posse e a ocupação das terras por quem fosse para o Oeste – como se vê nos filmes de faroeste. Qualquer pioneiro podia demarcar cento e tantos acres e ali se instalar com a família, porque só o fato de morar e trabalhar a terra fazia propriedade sua. O resultado foi que lá multiplicou um imenso sistema de pequenas e médias propriedades que criou e generalizou para milhões de modestos granjeiros uma prosperidade geral. Geral mas medíocre, porque trabalhadas por seus próprios donos, sem nenhuma possibilidade de edificar Casas-grandes & Senzalas grandiosas como as nossas".



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​Carta Maior, 14/06/2014



O sentimento nacional


Por Emir Sader



O Brasil só começou a se pensar como pais, como nação, como povo, a partir da chegada do Getúlio ao poder. Antes, vivíamos para fora e desde fora. Economia exportadora e importadora, sem produção nacional, sem mercado interno importante.

Se pensar como país é concomitante a ter sentimento nacional, ter auto estima. Não foi por acaso que Fernando Collor e FHC atentaram fortemente contra a nossa autoestima, para poder implementar o modelo econômico mais antinacional e antipopular: o modelo neoliberal, que escancarava o país para a exploração externa.

Collor atacou os servidores públicos como “marajás” e os carros produzidos aqui – como metáfora de toda a indústria – como “carroças”. FHC atacou os servidores públicos e os aposentados como “preguiçosos”. Para isso, FHC disse que ia “virar a página do getulismo”, porque queria liquidar o sentimento nacional e as conquistas dos trabalhadores.

A vitória do Lula e o sucesso do seu governo foram o maior incentivo à autoestima dos brasileiros, a que nos repensemos como país no mundo, como tipo de sociedade que queremos e podemos construir. Ter orgulho de novo de ser brasileiro é a alavanca para todos os outros avanços do país.

Todos os grandes movimentos populares de transformação do mundo tiveram um componente indispensável no sentimento nacional. A Revolução Russa se fez, também, como reação ao avassalamento do país, derrotado na guerra contra o Japão e tornado servil aos interesses das grandes potencias imperialistas, a Inglaterra e a França.

Posteriormente, a resistência soviética à invasão alemã, a derrota do exército nazista e o  avanço para derrubar o regime do Hitler – o que mudou o curso da segunda guerra e da própria historia -, se fez em nome da Grande Guerra Patriótica, como resistência do povo contra a invasão alemã.

A Revolução Chinesa foi possível como desdobramento da expulsão da invasão japonesa e da norte-americana, com um profundo sentimento nacional e orgulho de serem chineses, que hoje eles voltam a exibir. A Revolução Vietnamita foi uma revolução profundamente nacional nas suas origens, para expulsar os norte-americanos e derrotar o regime fantoche que eles tinham instalado no sul do país.

A Revolução Cubana foi, antes de tudo, uma revolução democrática e nacional, contra a ditadura pró norte-americana do Batista. Da mesma forma que a nicaraguense, contra a ditadura dos Somoza.

Esse componente nacional é chave na disputa política e ideológica. O que provavelmente mais dói na direita brasileira e nos seus aliados internacionais, foi a capacidade do Lula de levantar bem alto o orgulho de sermos brasileiros, a possibilidade de que o país dê certo, de que podemos e devemos seguir nosso próprio caminho, aliado aos países da região e do Sul do mundo, sem nos subordinarmos aos EUA.

A operação antibrasileira em curso atualmente, aqui dentro e desde fora do país – tem o objetivo de destruir a imagem do Brasil do Lula. Do país que mais luta contra a fome no mundo, que mais diminui a desigualdade, que cresce distribuindo renda, que se afirma como país soberano. Para isso tem que difundir esse clima de pessimismo, veiculado pelo monopólio antidemocratico da mídia.

Que o governo é incompetente, corrupto, que tudo que é comandado desde o Estado não dá certo. Que o país trilhou um caminho errado distanciando-se dos EUA e dos modelos centrados no mercado. Que os salários são os responsáveis pela diminuição do ritmo de crescimento e não a especulação financeira.

Em suma, precisam voltar a derrubar a autoestima dos brasileiros, voltando ao fatalismo de que não teríamos jeito. Quem contribui para isso, conscientemente ou não, pela direita ou pela ultraesquerda – queimando bandeiras do Brasil, torcendo contra a seleção, não valorizando todos os avanços na situação do povo – faz o jogo da direita, dos retrocessos. Que somente são possíveis com um povo desmoralizado, derrotado, sem auto estima, sem sentimento nacional.

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