sexta-feira, 4 de abril de 2014

Vala Comum: documentár​io revela o destino dos mortos pela ditadura no Brasil






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Carta Maior, 04/04/2014 



          

Vala Comum: documentário revela o destino dos mortos pela ditadura no Brasil


 
 
Por Gérson Trajano


Vala comum é uma cova normalmente localizada em cemitérios onde um conjunto de cadáveres não identificados é enterrado sem nenhuma cerimônia, sem o conhecimento dos familiares e sem nenhum registro oficial. Vala Comum é o titulo do filme que João Godoy realizou em 1994 sobre 1.049 ossadas encontradas em uma cova no cemitério Dom Bosco, no bairro de Perus, periferia de São Paulo.

Em princípio, seis presos políticos deveriam estar enterrados nessa vala: Denis Antonio Casemiro, Dimas Casemiro, Flávio Carvalho Molina, Francisco José de Oliveira, Frederico Eduardo Mayr e Grenaldo de Jesus Silva, mas a exumação mostrou o indício de outros desaparecidos políticos.

O documentário de Godoy traz os depoimentos Egle Vannuchi Leme, Felícia Oliveira, Gertrud Mayr, Gilberto Molina e Ivan Seixas. Gilberto é irmão de Flávio Molina, morto em 1971, Ivan é filho de Joaquim Alencar Seixas, que foi preso e torturado junto com o seu pai, e Gertrud é mãe de Frederico Mayr. Já Egle Leme é mãe de Alexandre Vannuchi e Felícia é mãe e Isis Oliveira. Todos assassinados pelo governo militar instalado no Brasil em 31 de março de 1964.

Emocionada, Egle conta que só ficou sabendo que Alexandre estava preso através de um telefonema anônimo. “Foi o meu filho caçula, José Augusto, quem atendeu o telefone, que dizia que Lê – era assim que a gente o chamava lá em casa – estava preso. Se não fosse esse telefonema, nunca saberíamos o paradeiro do meu filho. Ele seria mais um desaparecido político”.

Vannuchi foi detido, torturado e morto nas dependências do DOI-Codi, em março de 1973. Estudante do curso de Geologia na Universidade de São Paulo (USP), militante de esquerda, ligado à Ação Libertadora Nacional (ALN), tinha 22 anos quando foi morto. A versão oficial, divulgada pela imprensa, dizia que ele teria sido atropelado por um caminhão na esquina da rua Bresser com a avenida Celso Garcia, no momento em que tentava fugir de um cerco policial.

“Eles me deram até a placa do caminhão e o nome do motorista, mas testemunhas viram meu filho ser arrastado da cela em que foi torturado, todo ensanguentado”, diz Egle.

Ivan Seixas, filho de Joaquim Seixas, diz que seu pai foi o primeiro preso político a ser enterrado em Perus. “Ele era militante do sindicato dos Petroleiros lá no Rio de Janeiro e quando houve o golpe ele chegou em casa muito exaltado. Neste mesmo ano o regime já mostrava a sua cara. 18 pessoas foram mortas sob tortura, mas a versão oficial é de que elas se suicidaram”, afirma.

Pai e filho foram presos em São Paulo no dia 16 de abril de 1971 na altura do número 9.000 da rua Vergueiro. Foram levados para o Doi-Codi. Nesse mesmo dia, à noite, os militares prenderam sua mãe e suas duas irmãs, que ficaram encarceradas por um ano e meio.

No dia seguinte, 17, os jornais publicaram uma nota oficial com a notícia da morte de Joaquim fora morto durante um tiroteio com a polícia. "Isso foi uma farsa, meu pai foi morto sob tortura", afirma Ivan.

Ao mesmo tempo em que são mostrados os depoimentos, o documentário intercala cenas dos presidentes militares prometendo cumprir as leis, promover o bem geral e a integridade do brasileiro. O filme inclui também cenas de uma propaganda oficial que pretendia vender a imagem de uma país forte e que estava se desenvolvendo. Um "pais que vai pra frente".

Tortura e morte – A partir dos anos 1970 a ditadura civil-militar aperfeiçoa o seu aparato repressivo contra os opositores ao regime. A tortura torna-se prática corriqueira nos interrogatórios e várias pessoas contraria ao governo são assassinadas. Na maioria dos casos, as mortes são ocultadas e os corpos enterrados como indigentes em valas clandestinas.

O cemitério Dom Bosco foi construído pela prefeitura de São Paulo, em 1971, na gestão de Paulo Maluf e, no início recebia cadáveres de indigentes e vítimas da repressão política. Entidades de defesa dos Direitos Humanos e familiares dos desaparecidos já haviam denunciado a existência de uma vala comum na segunda metade dos anos 1970, mas ela só foi descoberta em 4 de setembro de 1990, na administração da prefeita Luiza Erundina.
 

A vala encontrada no Dom Bosco é uma escavação que possui a largura de uma retroescavadeira, com cerca de 32 metros de comprimento por 3 metros de profundidade, onde foram depositados sacos plásticos com inúmeras ossadas humanas.
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Folha.com, 02/04/14

O outro problema


Um escritor policial da velha guarda chamado John Dickson Carr (1906-1977) era especialista nos chamados “mistérios do quarto fechado”. A vítima é encontrada morta, no seu gabinete de estudos, sem sombra de arma nem pegadas do assassino por perto.

Pior que isso, o lugar estava trancado por dentro; nenhum sinal de que janelas ou portas tivessem sido arrombadas. Como o assassino entrou? Como saiu? Como matou o milionário?

Crimes assim perfeitos terminavam resolvidos pelo obeso dr. Fell, que numa tarde de verão manteve estranha conversa com um homenzinho “grave e sincero”. O homenzinho conta ao detetive um crime complicadíssimo, no gênero “quarto fechado”.

Poucas páginas são necessárias para que o dr. Fell reconstrua mentalmente todo o mecanismo do assassinato. A vítima havia se encostado na janela, no ponto mais alto da mansão. Levara um binóculo aos olhos.

Dentro do binóculo, um mecanismo preparado anteriormente fizera saltar uma flechinha especialmente pontiaguda, que penetrou por um olho da vítima até perfurar-lhe o cérebro. O detetive prossegue em seus raciocínios, e conclui que o assassino tinha sido o próprio homenzinho que acabava de lhe contar o caso.

Vem dessa circunstância o título do conto, “O Outro Problema”. Por que, afinal, o próprio assassino procurou o detetive para lhe propor o enigma? Talvez quisesse se certificar de que ninguém, nem mesmo o dr. Fell, seria capaz de desvendar o crime.

“Ele é um exibicionista, um sádico”, disse o advogado José Carlos Dias a respeito do coronel Paulo Malhães, depois do depoimento em que este admitiu à Comissão Nacional da Verdade as torturas e assassinatos que cometeu durante a ditadura militar.

Disse ter matado “tantas pessoas quanto foram necessárias”; não soube se lembrar quantas torturou, só que foram “muitas”; contou que quebrava os dentes e cortava os dedos dos cadáveres, para impedir que fossem identificados.

Fico pensando, em todo caso, no “outro problema”, para usar o título daquele conto policial. O que leva um ex-torturador a comparecer diante da Comissão?
Imagino que certo machismo militar se misture à teimosia de suas convicções políticas. “Não sou homem de me acovardar; vou à Comissão e enfrento essa comunistada.” De resto, está afastado o perigo de que sejam presos depois do que disserem.

A construção mental vai além disso, entretanto. Ao longo de muitas décadas, o torturador teve tempo para repetir a si mesmo o que já dizia ao fim de cada sessão de interrogatório: estou cumprindo o meu dever, estou salvando o país da ameaça comunista.

É difícil, sem dúvida, imaginar que alguém fosse capaz de convencer-se disso depois de ter feito o que o coronel Carlos Alberto Brilhante Ustra fez com Maria Amélia Teles, segundo esta contou à Folha.

Ustra levou os dois filhos de Maria Amélia, Edson e Janaína, à sala onde ela estava sendo torturada, junto com o marido. As crianças tinham 5 e 4 anos de idade. “Mamãe, por que você está azul?”, perguntou a criança para Maria Amélia, coberta de hematomas.

O ex-dirigente do DOI-Codi silenciou na Comissão da Verdade quando perguntado sobre torturas, mas repete o que todos os personagens da repressão dizem sempre. “Lutávamos pela democracia.”

A contradição, embora salte aos olhos, é das mais comuns. Para defender a democracia, faço uma ditadura. Para que o comunismo não acabe com os direitos humanos, acabo eu com os direitos humanos.

Nós matamos, mas “eles mataram também”. Até aí é fácil de ir. Não sei se algum torturador chegou a afirmar que “eles torturavam também”.

“Era uma guerra”, dizem os generais e os civis mais graduados do sistema, como se ignorassem que até nas guerras vale a Convenção de Genebra. Nós não inventamos a tortura, dizem outros. A Gestapo também usava… Por que tanta perseguição contra nós?

Uma frase do coronel Malhães acrescenta novo ingrediente a esse espetáculo de cinismo, de deboche e impunidade. “A tortura é um meio”, afirmou aos membros da Comissão. “Se o senhor quiser saber a verdade, tem que me apertar.”

Talvez seja essa a maior provocação. “Não conto tudo o que sei a respeito da ditadura. Vocês terão de me torturar para saber. Torturem-me. Mostrem que vocês são no fundo iguais a mim. Só desse modo conseguirei provar que eu estava certo ao fazer o que fiz.”

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