sexta-feira, 4 de outubro de 2013

Lampedusa, o cemitério da fraternida​de

Carta Maior, 04 de Outubro de 2013
 
 
Lampedusa, o cemitério da fraternidade
 
 
Por Saul Leblon
 
 


Desde a madrugada desta quinta-feira, as ondas e os barcos de resgate se alternam na tarefa de depositar corpos nas areias de Lampedusa, pequena ilha siciliana no extremo sul da Itália.
Corpos negros jovens, corpos velhos, corpos de crianças, corpos de mulheres grávidas.

Cinquenta, setenta, cem, cento e cinquenta, duzentos, duzentos cinquenta...

Mais próxima da África do que da Sicília (100 kms e 200 kms, respectivamente), a ilha de pouco mais de 5 mil habitantes se transformou em uma das portas europeias preferenciais dos desesperados.
De diferentes pontos da África, eles se atiram ao mar fugindo da fome, da guerra e da pobreza.

A tragédia frequentemente irá acompanha-los na bagagem.

Barcos lotados, estruturas precárias, pane, desespero.

Naufrágios.

Desta vez, quando a água invadia o navio lotado com 500 passageiros, os desesperados acenderam uma grande tocha no convés.

Na escuridão do Mediterrâneo, o pedido de socorro encontrou uma poça de gasolina...

Só em 2011, 2.700 corpos terminariam a viagem assim, enterrados no cemitério da ilha siciliana.
Foi um ano de pico de refugiados, sob influência da guerra de ‘libertação’ da Líbia.

Mas não fugiu à norma.

Dessa vez, eram eritreus, nigerianos, somalis.

Gente egressa de um esquecido cardápio de conflitos bélicos, geopolíticos e étnicos, que ajuda a vitaminar a fome no continente africano.

Estamos falando do lugar do planeta onde a legião de famintos só faz crescer.

Os Objetivos de Desenvolvimento do Milênio, da ONU, que incluem reduzir a fome à metade, até 2015, percorrem um caminho inverso na África.

O total de famintos saltou de 175 milhões, em meados dos anos 90, para cerca de 240 milhões hoje.

Um em cada quatro africanos padece de fome.
A Europa não é mais o lugar disposto a lhes estender as mãos.

Não as estende nem aos seus deserdados: 120 milhões de pobres e 27 milhões de desempregados.

Entregue aos ajustes fiscais, na ressaca dos mercados após o fastígio neoliberal, a Europa é hoje um museu de lembranças do acolhimento humanitário e político, que a transformaria em legenda da civilização e da fraternidade.

Em junho de 2008, em meio à espiral da volatilidade financeira, que desaguaria no colapso das sub primes nos EUA, o Parlamento Europeu jogou a pá de cal nessa identidade histórica.

A lei de Diretriz de Retorno, que trata da imigração, transformou o estrangeiro ilegal em criminoso. E criminoso passa a ser também o seu cúmplice.

As versões são contraditórias. Mas há quem afirme que três barcos pesqueiros deixaram de socorrer os náufragos de Lampedusa, por conta da lei que incrimina a cumplicidade ao ilegal.
A xenofobia implícita na Diretriz de Retorno encontrou na espiral da crise o caldo suculento para enrijecer os nervos e a musculatura.

As portas e os espírito endurecem nas crises. E se fecham aos que vem 'ameaçar a segurança' e ‘roubar empregos’.

Códigos civis assimilam o espírito do tempo, radicalizando-o.

Na Itália, em 2009, sob o governo do afável Berlusconi , o Parlamento não se fez de rogado.

A lei italiana pune adicionalmente a imigração ilegal com multa de até 10.000 euros (14.000 dólares) ;eleva para seis meses o tempo em que imigrantes ilegais podem ser detidos em ‘ centros especiais’ e atravessa a linha da beligerância: autoriza a criação de falanges civis, patrulhas desarmadas de cidadãos para “ajudar a polícia a combater o crime nas ruas”.
A legislação foi apresentada pelo então ministro do Interior,Roberto Maroni, membro da Liga do Norte, de extração fascista.

O bloco europeu tem hoje cerca de 8 milhões de imigrantes "sem papéis".

A radicalização extremista incentiva que se complete em terra aquilo que o canal da Sicília não deu conta de fazer sozinho.

Na Grécia, onde as taxas de desemprego triplicaram nos últimos seis anos e 59% da juventude encontra-se fora do mercado de trabalho, os integrantes do partido nazista, Aurora Dourada, assumiram a tarefa.
Depois de dezenas de ações agressivas de suas milícias contra ambulantes e homossexuais, muitas vezes em parceria com o aparato policial, dirigentes do Aurora estão sendo detidos sob suspeita de assassinato de um músico, um rapper anti-fascista, ocorrida em setembro.

O partido nascido na crise já é a terceira força política do país.

Seu discurso atribui aos imigrantes a origem do estrangulamento financeiro de uma sociedade esmagada pelas sucessivas condicionalidades impostas por Berlim, Bruxelas e o FMI.

Em entrevista coletiva no ano passado, o líder do Aurora, Nikos Mijaloliakos, que se encontra detido, defendeu o uso de minas terrestres e arame farpado nas fronteiras para impedir que imigrantes entrem na Europa.
A governadora da Lampedusa, Giusi Nicolini, certamente de extração política diversa, condensa suas preocupações em outra direção:

Digam-me quão grande tem que ser o cemitério em Lampedusa?’, desabafou ontem, questionando a indiferença dos atuais 'estadistas' da UE ao naufrágio conjunto dos imigrantes e do velho portal da civilização.




O Espírito de 1945 hoje

 

Léa Maria Aarão Reis



Kenneth Loach, de 77 anos, é filho de operários de Nuneaton, no Reino Unido, pequena cidade próxima de Coventry, uma das mais arrasadas pela blitzkrieg de Hitler na Segunda Guerra Mundial.

Sua idade e sua origem são duas chaves para entender a coerência e a profunda humanidade presentes na filmografia desse cineasta socialista, um dos grandes mestres do cinema. Sua realidade vem contida nos perfis afetuosos da classe operária inglesa e das suas lutas, na memória da experiência da guerra vivida na própria carne e nos difíceis anos do pós-guerra imediato, na Inglaterra. “Venho de um meio operário,” costuma dizer Loach. “É o mundo que conheço e que me interessa retratar.”

O seu mais recente longa-metragem, O Espírito de 45, exibido no Festival do Rio, é mais um documentário do alentado pacote de 148 documentários apresentados, este ano, entre as 380 produções da mostra.

O filme é objeto de comemoração especial. Marca o retorno do mestre inglês ao gênero do filme doc do qual se afastara há décadas e no qual é inigualável. Apresenta emocionantes imagens de época, pérolas históricas, que Loach e sua equipe garimparam em diversos depósitos esquecidos, no Reino Unido. Documentos tratados com tal apuro técnico que se assemelham a imagens produzidas hoje. Um deles mostra Churchill discursando na praça, em campanha para Primeiro Ministro pelos conservadores (acabou derrotado pelos trabalhistas) e, surpreso e constrangido, sendo vaiado. Imagem rara. “Com a vitória socialista começa uma época triunfante”, diz uma mulher em entrevista. “Na educação, por exemplo, as escolas formavam cidadãos porque as crianças aprendiam a pensar por elas próprias.” Naquele tempo, depõe outro homem, “tínhamos o controle sobre nossas vidas.”

A miséria extrema da população nos meses subsequentes ao armistício, o estado falido e exaurido pelo esforço de guerra, o desemprego, a fome, crianças andrajosas brincando nas ruas, e tocantes entrevistas com trabalhadores, homens e mulheres hoje idosos, mineiros, estivadores, ferroviários, enfermeiras, médicos e professores todos se lembram da época de agonia.

A montagem de cenas e sequências capta com vivacidade (uma das marcas do cinema de Loach) e intenso realismo a atmosfera de 1945 quando centenas de milhares de pessoas viviam em favelas. “Às vezes”, comenta um velho, “eu e mais oito crianças, meninos e meninas, dormíamos na mesma cama convivendo com pulgas, percevejos e ratos. A comida ainda era racionada e comia-se pão e geléia dias a fio.”
A narrativa do filme começa com uma imagem ícone da época, a jovem radiante nas festas populares da vitória, em Piccaddily. Em seguida, a energia e o entusiasmo das pessoas construindo o estado de Bem-Estar Social britânico e a consciência de união e solidariedade que tomaram conta do Reino Unido - o espírito de 1945. Uma nova Londres é construída, com moradias dignas para os trabalhadores. Casas com banheiros também no andar térreo (antes, só no andar superior) e um pequeno quintal, o tão caro backyard dos ingleses.

A partir de então se seguem as nacionalizações. Keynes participa do governo como conselheiro informal. Em 1946 o Ministro da Saúde Anerin Bevan cria um Serviço Nacional de Saúde, o célebre NHS (National Health Service). Parte do princípio que é inadmissível o elemento comercial interferir na relação entre médico e paciente. “Meu avô“, diz uma mulher, “só começou a usar óculos aos 70 anos, com a criação do NHS. Antes, sem dinheiro, lia usando um pedaço de vidro de fundo de garrafa à maneira de lupa.” Outro trabalhador aposentado comenta com orgulho: “Eu ficaria envergonhado de ser cidadão de um país tão rico como os Estados Unidos, sem um sistema de saúde semelhante ao nosso.”

O filme vai seguindo passo a passo os anos seguintes. Em 1947, nacionalização das minas. Os mineiros passam a trabalhar em condições seguras. Dos portos - até 47 os estivadores não contavam com salário fixo. Um ano depois chega a vez das ferrovias, outro acontecimento histórico. Em 1949 o gás é nacionalizado e, em 1951, o ápice do estado de Bem-Estar Social é celebrado com o Festival da Inglaterra.

No terço final do filme, Loach apresenta o desastre tatcheriano dos anos 70. Uma única imagem marca a aparição da Primeira Ministra em um dos seus primeiros discursos em praça pública no qual invoca São Francisco de Assis (!). É vaiada.

Começa o desmonte do estado de Bem-Estar Social e das suas estruturas. Redução dos salários, demissões em massa, o enfraquecimento dos sindicatos e a repressão policial. Em 1984 a água é privatizada, em 86 o gás, em 87 a aviação comercial e em 88 as grandes manifestações de rua são reprimidas violentamente pela polícia de ferro. Em 1989 é a vez das docas e a volta do trabalho informal dos estivadores. No mesmo ano a eletricidade é privatizada, em 94 é a vez dos portos. Um milhão de jovens ingleses engrossava, então, as fileiras dos desempregados. Em 2011 foi a vez dos correios. As imagens são desalentadoras.

Vemos empresas terceirizadas contratadas, hoje, para atuar no serviço público, em especial nos hospitais. ”Não há mais nenhum país para os pobres”, diz uma idosa para a câmera de Loach. “E estaremos acabados se o governo conseguir terminar com o Serviço Nacional de Saúde.” Será a última fronteira.

Por que Kenneth Loach fez este filme? Os jornalistas que cobriram o Festival de Cannes – onde ele foi premiado seis vezes; duas com a Palma de Ouro -, em maio passado, perguntavam. Ele respondeu ao jornal La Repubblica de Roma: “Porque a sociedade hoje não funciona; é um caos. E para que as pessoas pensem no que pode ser feito, outra vez, na promoção do bem-estar social. Meu filme é para lembrar o que foi conseguido no passado.” E aproveitou para lamentar: “Não há mais esquerda na Europa. Ela se desmanchou na social-democracia e foi devastada pelas divisões internas.”

O Espírito de 45 é um filme esférico. Depois das sequencias otimistas com imagens das festas do Labour Party, nas ruas, tratadas em tecnicolor, ele volta à mesma imagem do início. A moça de Piccadilly no meio de uma multidão exultante e a trilha musical insinuando o que pode ser transformado, novamente, hoje. É uma daquelas músicas das bandas dançantes de época pinçadas por George Fenton, compositor e colaborador de Loach em onze filmes do mestre.

Mas uma ponta de tristeza vem do trompete de Harry James.

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