sexta-feira, 7 de junho de 2013

Nove Rainhas: Mentiras e máscaras como metáfora do neoliberalismo






Sexta-Feira, 07 de Junho de 2013

Nove Rainhas: Mentiras e máscaras como metáfora do neoliberalismo


Oscar Guisoni



Buenos Aires - Qual é o encanto de “Nove Rainhas”, o policial argentino filmado no emblemático ano 2000 pelo diretor Fabián Belinsky? Por que, uma década e meia depois, o filme protagonizado por Ricardo Darín e Gastón Pauls continua sendo um clássico latino-americano? Que mensagem trazem consigo estes dois estelionatários em busca da riqueza fácil por trás de uma improvável coleção de selos provenientes, nada mais, nada menos, que da República de Weimar, que levam o enganador nome de “as Nove Rainhas”?

Existe uma crença enraizada na crítica cinematográfica mundial que sustenta que, em épocas de crise, a criatividade floresce de modo exponencial, tanto como explodem os índices de desemprego e as dívidas não pagas. Uma crença que começou a forjar-se quase junto com o cinema sonoro, à luz da trágica Grande Depressão que estourou em 1929, o ano em que as telas começaram a falar e mudaram o cinema de uma vez e para sempre. E existe uma leitura - muito mais sofisticada, se queremos - que compara o policial negro e as histórias de estelionatários e ladrõezinhos com a solapada crítica social a uma sociedade que perdeu seu rumo nas mãos dos especuladores e do capitalismo descontrolado. 

Os ladrões de pouco valor se transformam assim em uma espécie de contestadores do sistema que refletem com criatividade e em pequena escala o roubo generalizado ao qual a sociedade em seu conjunto é submetida em meio à crise e a descrição do turvo ambiente no qual se movem se torna crítica social pura, enquanto a estrutura do relato policial esconde a ansiedade que gera a crise e a transforma em catarse. Com este ímpeto, em Hollywood se realizaram joias como The Public Enemy (Willian Wellman, 1931) ou Scarface (Howard Hawks, 1932) e se escreveram os grandes clássicos do “hard boiled”, como O Falcão Maltês, de Dashiell Hammett, levada ao cinema em 1941 pelo mestre John Huston. 

Nessa linha é preciso, então, ler a “Nove Rainhas” argentina. Filmada no ano 2000, apenas alguns meses antes do estouro do modelo neoliberal que havia levado a seu paroxismo o presidente Carlos Menem e que levou até sua agonia o conservador Fernando De La Rúa, o filme mostra dois estelionatários em ação, em busca de uma coleção de selos que supostamente se encontram em mãos de uma viúva ingênua e à qual pretendem arrebatá-la para vendê-la nada mais nada menos que a um empresário espanhol, símbolo do ladrão de colarinho branco que enriqueceu com as privatizações estatais na década de 90, a quem esses dois malandros crioulos querem arrancar parte de seus exorbitantes lucros.

Mas as coisas não são como parecem e logo o espectador começa a suspeitar que exista alguém oculto que também o está enganando. E, na medida em que o relato policial se faz comédia de enredos, o espectador vai se preparando para exercer esta suprema arte da crítica ao neoliberalismo que destrói o sentido comum da época com suas próprias armas: desconfia de tudo, os seres humanos só estão nesse mundo para traí-lo. Ou, para dizer com as palavras do fundador da escola de Chicago, o aristocrata austríaco Friedrich Hayek: os seres humanos são individualistas acérrimos que só buscam satisfazer seu interesse pessoal, o altruísmo é um defeito só dos fanáticos. 

Uma década e meia depois, Nove Rainhas continua entusiasmando, assim como continuam fascinando os grandes clássicos do policial norte-americano da década de 30, porque o sentido comum que fez possível a crise ainda subjaz em uma sociedade como a latino-americana, que começou a fazer a batalha contracultural a duras penas, mas que ainda continua desconfiando profundamente do “outro” e continua procurando pequenas tretas para tratar de reparar com astúcia popular o saque ao que continua sendo submetida de vez em quando pelos “suspeitos de sempre”.

Tradução: Liborio Júnior

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