domingo, 8 de abril de 2012

O “duplipensamento" e o estandarte da hipocrisia

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Demóstenes e o ”duplipensar” da grande imprensa



Gilson Caroni Filho


Qualquer pessoa de bom senso, que tenha lido os articulistas da grande imprensa, desde o surgimento dos escândalos envolvendo o senador Demóstenes Torres, concluirá facilmente que os trabalhadores das oficinas de consenso, aturdidos com o que lhes parece um ponto fora da curva, uma desconstrução dispendiosa e extemporânea, são como aqueles motoristas que imaginam poder dirigir um veículo com os olhos presos ao retrovisor. Não enxergam a clareza da realidade. O círculo do jornalismo de encomenda, minúsculo e cego, está só, murado no seu isolamento.

A pedagogia dos fatos, inexorável nas suas evidências, parece passar ao largo das redações. O que se faz ali não é jornalismo, mas um simulacro de literatura de antecipação marcada por profundo pessimismo e cenários de devastação. Talvez George Orwell e seu clássico “1984” expliquem melhor o suporte narrativo da fábula que não deixa de trazer uma concepção de história autoritária e retrógada.

As delicadas relações do senador goiano com o bicheiro Carlinhos Cachoeira - e a possibilidade de que o governador tucano Marconi Perillo venha a ser o próximo alvo - pôs em operação o "duplipensar" orwelliano que, desde a posse de Lula, está incorporado aos manuais de redação. Como o objetivo é afastar o ex-varão de Plutarco de cena, para prosseguir atacando o governo da presidente Dilma, os "cães de guarda" cumprem a tarefa com afinco.

No reduzido vocabulário da "Novilíngua", o “duplipensamento" é assim explicado por um dos personagens de “1984”: "capacidade de manter simultaneamente duas crenças opostas, acreditado igualmente em ambas(...). Saber que está brincando com a realidade mas, mediante o exercício de tal raciocínio, convencer a si próprio, que não está violentando a realidade. O processo deve ser consciente, pois do contrário não funcionará com a previsão necessária: mas, ao mesmo tempo, deve ser inconsciente para não produzir sensação de falsidade e culpa". Com esse trecho, cremos ter decifrado os sorrisos de Merval Pereira, Dora Kramer, Augusto Nunes, Eliane Catanhede, entre outros, quando confrontados com a palavra "ética".

Para eternizar a ordem que defendem com unhas e dentes, o cenário político, submetido ao pensamento único, passa por processos de ocultamento e simplificação, visando a eliminar todas as possibilidades de pensar dos membros do Partido Imprensa.

Outra implicação do "duplipensar" da mídia corporativa é a constante alteração do passado. O registro – e consequentemente a memória - dos fatos ocorridos devem ser refeitos sempre, a fim de adaptarem-se ao presente. O trabalho de um "bom" editorialista é reescrever a visão dos veículos em que trabalha para que não contradiga a realidade de hoje. Assim, por exemplo, Folha, Globo e Estadão podem condenar o golpe de 1964, mesmo o tendo apoiado ostensivamente. Se um livro denuncia um líder político como Serra e outras figuras no seu entorno, a solução é simples: Ele nunca foi escrito e, portanto, jamais será resenhado, sendo passível de punição severa quem não entender como funcionam as "leis naturais".

Além da eliminação do passado como elemento de desarmonia com o presente e como instrumento de verificação das afirmações do Partido Imprensa, este recorre a outros meios, bem mais convencionais, para moldar a consciência de seus filiados e simpatizantes (leitores e telespectadores): educação permanente assegurada pela propriedade cruzada dos meios de comunicação, atividade coletiva sem intervalos, o que pode ser obtido mediante ampla oferta de blogs, sites, jornais e redes que digam sempre o mais do mesmo . Para concluir, vem a valorização do poder político como fim, não como meio.

O incômodo Demóstenes deve, após a sequência de denúncias, ter um diagnóstico clínico que despolitize o seu desvio. Merece, pelos serviços prestados, um roteiro que conte a tragédia do Catão caído, até que, finalmente, desapareça na lata de lixo reservada aos que fugiram da trama original. Assim agem os bons autores ao tomar como ponto de partida uma realidade familiar e palpável e transformá-la em espetáculo perecível. Em tempo: o DEM, assim como o PFL, nunca contou com o apoio das corporações midiáticas por um simples motivo: nunca existiu.

Vejam como operam nossos talentosos colunistas. Orwell ficaria tão contente que, com certeza, lhes arrumaria um lugar no Ministério da Verdade.

"Em um mês, o senador Demóstenes Torres passou de acima de qualquer suspeita para abaixo de qualquer certeza, num episódio que desafia os romances policiais mais surpreendentes. Alem da atuação implacável contra a corrupção, ele tinha a cara, vestia o figurino e se comportava como um incorruptível homem de bem - e talvez seja mesmo sócio da holding criminosa de Cachoeira" (Nélson Motta, 6/04/2012, o Globo).

"Demóstenes Torres não seria beneficiado pelo "vício insanável da amizade" - expressão usada pelo notório Edmar Moreira (o deputado do "castelo") para definir o principal obstáculo a punições -, pois os amigos que fez ali estão entre as exceções e os demais confirmam a regra.Por terem sido alvos do senador na face clara de sua vida agora descoberta dupla, podem querer mostrar-se ao público em brios. O problema, porém, é a falta de credibilidade". (Dora Kramer, 6/04/2012, Estado de São Paulo)

"Esse personagem que o senador criou para si próprio não era uma mentira de Demóstenes, ele incorporou esse personagem e acreditava nele. Podia acusar com veemência seus colegas senadores apanhados em desvios, como Renan Calheiros, enquanto mantinha o relacionamento com o bicheiro Carlinhos Cachoeira porque, como todo psicopata, não misturava as personalidades (Merval Pereira, reproduzindo argumento do psicanalista Joel Birman, 30/03/2012, O Globo).

Admiráveis funcionários de um jornalismo inqualificável.

Gilson Caroni Filho é professor de Sociologia das Faculdades Integradas Hélio Alonso (Facha), no Rio de Janeiro, colunista da Carta Maior e colaborador do Jornal do Brasil.


O estandarte da hipocrisia

CartaCapital, Ed. 692


Estandarte da hipocrisia


Por Mauricio Dias



O senador Demóstenes Torres é uma figura mais emblemática do que ele próprio imagina. Essa derrocada que sofreu, após assumir o papel de guardião da moral pública, tem sido típica da oposição conservadora há mais de meio século.
Caso houvesse um lema na bandeira desses oposicionistas – sem dúvida representada pelo lábaro udenista  (foto) – ele seria composto de duas palavras: “Moralidade e Legalidade”, e poderia ser apelidado imediatamente de “Estandarte da Hipocrisia”.
Esse espírito da UDN, hipocritamente moralista e legalista, assombra a democracia brasileira desde a fundação, em abril de 1945. Na esteira da participação militar do País na Segunda Guerra Mundial, os udenistas encarnaram o papel de principal oposição ao Estado Novo. Muita gente, à esquerda e à direita, foi presa e sofreu no cárcere. Não se sabe, no entanto, de nenhum udenista preso ou torturado durante o regime varguista.
No DNA da UDN, além de uma ideologia que varia do conservadorismo ao reacionarismo golpista, consta também a célula de rejeição ao que de melhor fez o ex-presidente Getúlio Vargas. A construção das bases do moderno Estado Nacional e das regras de proteção aos trabalhadores.
Principalmente por essas decisões Vargas pagou com o suicídio, em 1954, quando o arauto da oposição era Carlos Lacerda. Ele segurou o estandarte da moralidade quando criou a expressão “Mar de Lama”, que supostamente corria sob o Palácio do Catete. Nada provado, mas perfeitamente executado e ampliado pelas trombetas da mídia.
Na eleição de 1950, Vargas deu uma surra eleitoral no udenista Eduardo Gomes, um brigadeiro identificado como reserva moral do País. Gomes já tinha perdido, em 1945, para o candidato Eurico Gaspar Dutra, apoiado por Getúlio. Em 1955, a UDN empurrou para o páreo o marechal Juarez Távora. Ele perdeu para Juscelino Kubitschek, que tinha como vice o getulista João Goulart.
A UDN tentou ganhar no tapetão. Renomadas figuras do partido, como Afonso Arinos, tentaram um golpe branco com o argumento, não previsto na legislação, de que JK não havia conquistado a maioria absoluta de votos. Não deu certo.
Em 1960, os udenistas ganharam a eleição presidencial na garupa da vassoura do tresloucado Jânio Quadros. Ele renunciou após sete meses, mas levou a faixa presidencial na esperança de voltar ao poder com o apoio dos militares. Prevaleceu, no entanto, a resistência democrática, comandada por Leonel Brizola, então governador do Rio Grande do Sul. A esquerda saiu fortalecida do episódio e com a bandeira da legalidade nas mãos.
O udenismo chegou ao poder em 1964. Dessa vez a reboque dos militares, com a deposição de João Goulart. Por uma sucessão de erros políticos do presidente, e com uma parte da esquerda alimentando-se de fantasias revolucionárias, entregou de mão beijada aos golpistas o discurso da legalidade. Era falsa. A legalidade udenista abriu caminho para uma ditadura que durou 21 anos.
O mote da ética levou o espírito udenista, encarnado pelo ex-presidente Fernando Henrique, a propor o impeachment inicialmente e, posteriormente, a renúncia à reeleição ao ex-presidente Lula. Não levaram.
Os conservadores de agora, com o processo democrático fortalecido, sem o discurso da legalidade, acabam de perder a bandeira da moralidade sustentada pela hipocrisia de Demóstenes Torres. Com que bandeira eles vão à luta eleitoral?

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