segunda-feira, 19 de setembro de 2011

O risco bancário chinês

O risco bancário chinês


Marcelo Justo - Correspondente da Carta Maior em Londres, atualmente escrevendo da China

Os bancos europeus são a ponta de lança de uma crise que pode empalidecer a de 2008. Enquanto os olhares se concentram na Europa, a China está tomando precauções para evitar turbulências financeiras em uma economia que cresceu mais de 10% ano nos últimos 30 anos. A vulnerabilidade do sistema não se limita ao setor imobiliário. Em Beijing, há preocupação com a dívida em nível municipal e provincial, lastro do gigantesco pacote de estímulo que o governo pôs em marcha logo após o estouro financeiro de 2008.

O governo comunista, hipersensível ao impacto político da economia, apertou o cinto do setor financeiro muito mais que a Europa e os Estados Unidos. Entre outubro do ano passado e junho deste ano, o Banco Central da China elevou mensalmente os requisitos do capital bancário. Se as regras pós-Lehman Brothers, de Basil III, que regem a banca internacional, exigem que as entidades financeiras tenham uma base de capital de 3% em relação a seus ativos, a China exige 4%. Se o Ocidente estendeu até 2015 o prazo para a adoção de novos requisitos regulatórios, a China quer tudo pronto em 2013. A China tem uma vantagem adicional para implantar essas medidas: o sistema financeiro está, majoritariamente, nas mãos do Estado. Na direção dos bancos, há membros do Partido Comunista encarregados de vigiar que as diretrizes do governo sejam cumpridas.

A cabeça de um peixe apodrecido
O regulador chefe do sistema bancário chinês, Liu Mingkang, é uma peça fundamental neste sistema de controle. Liu explica sua estratégia com frases e refrões coloridos. Um de seus favoritos é: “O peixe começa a cheirar mal pela cabeça”. Este “peixe” – como quase tudo na China – é gigantesco. Com uma população de mais de 1,3 bilhões de pessoas, a China tem 202 mil agências com um valor total de mais de 6 trilhões de dólares.

As agências classificadoras de risco ocidentais, que depois do fiasco de 2008 se tornaram mais papistas que o papa, alertaram que o principal risco que a China enfrenta está nos empréstimos no superaquecido setor imobiliário. A chefe da Fitch na China, Charlene Lu, advertiu em agosto que esse setor é mais complicado e imprevisível que o da dívida estatal. “ O mercado imobiliário penetra toda a economia de maneira que torna impossível isolar o problema e solucioná-lo com uma massiva injeção de dinheiro”, assinalou Lu.

Com a acelerada liberalização das duas últimas décadas e um nível populacional que desafia qualquer cálculo, a China tem vivido uma bolha imobiliária que levou a uma triplicação dos preços da propriedade entre 2005 e 2009. O relaxamento creditício posterior à quebra do Lehman Brothers aprofundou esse processo. O setor não só foi importante fator de crescimento por seu impacto multiplicador na economia (produção de aço, cimento, etc.) como também se constituiu em uma importante fonte de financiamento estatal.

Os donos da terra
Os municípios e as províncias são os donos da terra. Enquanto tal, são parte interessada na dinâmica imobiliária. O contínuo aumento do preço da propriedade permite-lhes obter maiores vantagens da venda para financiar projetos de infraestrutura.

Esses interesses criados em nível local são confrontados pelo governo central que quer manter fechada a caixa de pandora imobiliária. Beijing impôs um aumento das taxas hipotecárias, fortes restrições à aquisição de um segundo imóvel e impostos sobre a propriedade residencial que estão resfriando o mercado. A China Index Academy avalia que o preço da propriedade em agosto em 10 cidades caiu em média 0,41%, ainda que nas principais cidades (Beijing, Canton), tenha registrado um aumento de 0,6%. A estimativa é que os preços caiam cerca de 10% nos próximos 12 meses.

O êxito desta estratégia não está livre de perigos. É difícil valorar o impacto que este enfrentamento terá sobre o setor da construção. Entre as grandes construtoras, as estatais têm a melhor avaliação creditícia, enquanto que alguns gigantes privados, como Greentown China Holding Ltda., viram suas vendas sofrerem uma queda de aproximadamente 2,6 bilhões de dólares. Essas perdas são uma amostra das dificuldades da parceria imobiliária-financeira para sair ordenadamente da febre especulativa dos últimos anos.

O outro risco
O outro pé do risco financeiro chinês é o setor provincial e municipal. Em julho, a Academia de Ciências Sociais da China e o Ministério de Finanças publicaram um informe onde alertavam sobre o perigo de uma crise da dívida como a que afeta hoje a União Europeia, Estados Unidos e Japão. O informe estimava que este risco era real, mas no “longo prazo”. Ainda assim, o primeiro ministro Wen Jiabao ordenou aos governos locais que adotassem medidas para conter este risco no “longo prazo”.

Em setembro, uma auditoria estatal calculou que a dívida total dos governos locais era de 1,6 trilhões de dólares. Na maioria dos locais, estava em torno de 25 a 38% do PIB, mas em alguns lugares, como em Hawai China, a província-ilha do Sul, superava 45%. Ao publicar essas cifras, o governo insistiu que as dívidas eram administráveis e muito abaixo dos níveis da dívida acumulados pelos países da Europa ou pelos Estados Unidos. Alguns analistas observaram que, em vários casos, as dívidas eram maior que o esperado e provocavam o temor sobre a presença de buracos negros nas finanças estatais.

O temor é duplo. Com a crise mundial como pano de fundo, o governo busca um ajuste gradual com um impacto difícil de prever para uma economia acostumada a um ritmo descomunal de crescimento. Por enquanto, trata-se de um esfriamento “a la China” (crescimento de 9% ao invés de 10% para este ano com perspectivas de uma queda para 8% em 2012), mas em meio aos temores globais ninguém pode descartar uma abrupta queda que leve a defaults com impacto direto no setor bancário.

Não resta dúvida que esse risco chinês é o que a economia mundial menos necessita hoje. Alguns analistas, como o economista Nouriel Roubini, da Stern School, consideram que cedo ou tarde a China sofrerá uma “aterrisagem forçada”. “Nenhum país pode investir 50% de seu Produto Interno Bruto sem exceder sua capacidade produtiva. Em 2013, com toda probabilidade, a economia chinesa terá que fazer uma aterrisagem forçada”, disse Roubini recentemente. Vindo de quem alertou sobre os perigos que pairavam sobre a economia mundial muito antes de 2008, é um prognóstico digno de se levar em conta, mas é preciso não esquecer que a China, por seu próprio peso, desafiou a lei da gravidade em mais de uma oportunidade nas últimas décadas.

Tradução: Katarina Peixoto

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