domingo, 19 de dezembro de 2010

A história do andar de baixo sobreviveu

São Paulo, domingo, 19 de dezembro de 2010

ELIO GASPARI

FALTOU POUCO para que o Senado determinasse a destruição da história do andar de baixo nacional. No projeto do novo Código de Processo Civil aprovado na noite de quarta-feira, o artigo 1.005 mandava à "reciclagem" (versão light da fogueira) os processos arquivados há mais de cinco anos. Numa negociação de última hora, o artigo foi mandado ao lixo. O texto seguiu para a Câmara, e é provável que os presidentes de Tribunais de Justiça interessados em se livrar do papelório ressuscitem o lance.
Nesses processos estão os litígios dos anônimos. Durante sua Presidência, José Sarney sancionou uma lei que mandou incinerar velhos processos trabalhistas. Entre eles estava o caso de um operário pernambucano que, em 1959, perdeu o dedo mínimo da mão esquerda numa prensa. Queimaram o processo da mutilação de Lula.
O instinto destruidor tem um argumento: os tribunais guardam cerca de 80 milhões de processos e é um sufoco preservá-los. Falou-se em microfilmá-los, mas, à parte o risco de criar uma Vara de Preservação de Papéis, o serviço custaria em torno de R$ 2,5 bilhões.
O dilema não é queimar ou microfilmar, mas destruir ou não destruir. Ele já foi resolvido pelo Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, que guarda, em boas condições, 10 milhões de processos.
A história do andar de cima está na imprensa, nos debates parlamentares e nas atas do Copom. A da choldra, quando muito, em processos e inquéritos policiais.
Um exemplo: acaba de sair o livro "O Alufá Rufino", dos historiadores João José Reis, Flávio dos Santos Gomes e Marcus de Carvalho.
Conta a história do negro Rufino José Maria, um nagô muçulmano liberto, preso no Recife em setembro de 1853 sob a suspeita de estar metido num projeto de revolta de pretos. Nada descobriram, além da história de sua vida. Rufino viu-se escravizado no Benin, chegou à Bahia com 17 anos, foi cozinheiro de três senhores, comprou sua alforria e trabalhou como tripulante de navios negreiros. A partir de sete páginas do depoimento de Rufino, os três historiadores retrataram a vida do Rio, do Recife e do Atlântico do tráfico de escravos.
Não há como selecionar processos ou criar amostragens. Ou se guarda ou se perde.



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Folha de São Paulo, 25/08/2010

Uma agressão à história  

SILVIA HUNOLD LARA

Uma nova versão do Código de Processo Civil está em discussão no Senado. Certamente, haverá polêmica. Mas há pelo menos um artigo que precisa ser modificado desde já: o de número 967, que restaura o antigo artigo 1.275 do atual código, de 1973, que autorizava a eliminação completa dos autos findos há mais de cinco anos, "por incineração, destruição mecânica ou por outro meio adequado".
O texto atropela a obrigação do Estado de preservar documentos históricos, viola regras arquivísticas básicas e reforça a moda burocrática de limpar o passado destruindo fontes importantes para a memória do país. Se o artigo proposto se transformar em lei, um número incalculável de processos cíveis pode ser destruído.
A medida tem antecedentes históricos. Em 1890, Rui Barbosa mandou queimar os documentos referentes aos escravos existentes na Tesouraria da Fazenda, para impedir que ex-senhores insatisfeitos com a abolição reclamassem indenizações.
O acesso aos documentos do Judiciário, sobretudo da área cível, permitiu aos historiadores contornar parcialmente esse ato lesivo, possibilitando recuperar cópias dos registros da propriedade escrava, com dados indispensáveis para o estudo da demografia e da economia escravistas.
Além da vida cotidiana das fazendas e engenhos, essa documentação permitiu conhecer melhor as negociações em torno da alforria e reconstituir a atuação de abolicionistas negros radicais, como Luiz Gama, e acabou por redimensionar a história da escravidão e da liberdade no Brasil.
Basta substituir "fazendas e engenhos" por "empresas e fábricas", "escravo" por "operário" e "abolicionistas" por "sindicalistas" nas linhas acima para se ter a dimensão do estrago que a autorização proposta pelo artigo 967 pode causar.
Em 1975, depois da gritaria de historiadores, juristas e arquivistas, o tal artigo 1.215 foi suspenso pela lei nº 6.246. Isso não impediu que, em 1987, a lei nº 7.627 voltasse a usar os mesmos termos para autorizar a eliminação de processos da Justiça do Trabalho.
Nessa área, argumentos facilmente contestáveis, como a necessidade de reduzir custos de armazenamento ou uma interpretação retrógrada e restritiva da cláusula que manda recolher aos arquivos públicos os "documentos de valor histórico", têm sido usados para justificar a destruição de centenas de milhares de processos trabalhistas, apesar da intensa movimentação de pesquisadores, arquivistas e magistrados.
Rui Barbosa pelo menos lidava com questões mais concretas. No caso do atual projeto de lei, nada justifica tal barbaridade. O Senado tem agora o dever de corrigir esse atentado à cidadania -ou será cúmplice desse crime?
Por que não aproveitar a ocasião para mudar, inscrevendo em lei a necessidade de proteger de fato o patrimônio público nacional, do qual fazem parte os processos judiciais (cíveis, criminais e trabalhistas)? Isso, sim, seria um bom modo de entrar para a história! Com a palavra, os senadores.

SILVIA HUNOLD LARA é professora do departamento de História da Unicamp (Universidade Estadual de Campinas).

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Certas propostas e atitudes, de tão indecentemente absurdas, deveriam conduzir seus autores direto para a cadeia ou para um manicômio.
Que ausência absoluta de respeito pela história de um país.

 
Folha de São Paulo, 21/07/2010
 
História não é maconha, para ser queimada

ELIO GASPARI

A PROFESSORA SILVIA Hunold Lara, da Unicamp, pede que o Congresso socorra a história do Brasil. Há cerca de um mês, uma comissão de sábios entregou ao Senado um anteprojeto de reforma do Código de Processo Civil que prevê a incineração, depois de cinco anos, de todos os processos mandados ao arquivo. Querem reeditar uma piromania de 1973, revogada dois anos depois pelo presidente Ernesto Geisel.
Se a história do Brasil for tratada com o mesmo critério que a Polícia Federal dispensa à maconha, irão para o fogo dezenas de milhões de processos que retratam a vida dos brasileiros, sobretudo daqueles que vivem no andar de baixo, a gente miúda do cotidiano de uma sociedade. Graças à preservação dos processos cíveis dos negros do século 19 conseguiu-se reduzir o estrago do momento-Nero de Rui Barbosa, que determinou a queima dos registros de escravos guardados na Tesouraria da Fazenda.
Queimando-se os processos cíveis, virarão cinzas os documentos que contam partilhas de bens, disputas por terras, créditos e litígios familiares. É nessa papelada que estão as batalhas das mulheres pelos seus direitos, dos posseiros pelas suas roças, as queixas dos esbulhados.
Ela vale mais que a lista de convidados da ilha de Caras ou dos churrascos da Granja do Torto.
A teoria do congestionamento dos arquivos é inepta. Eles podem ser microfilmados ou preservados digitalmente. Também podem ser remetidos à guarda de instituições universitárias. O que está em questão não é falta de espaço, é excesso de descaso pela história do povo. Pode-se argumentar que os processos com valor histórico não iriam ao fogo, mas falta definir "valor histórico".
Num critério estritamente pecuniário, quanto valeria o contrato de trabalho assinado nos anos 50 por uma costureira negra de Montgomery, no Alabama? Certamente menos que um manuscrito de Roger Taney, o presidente da Corte Suprema dos Estados Unidos que deu o pontapé inicial para a guerra civil. Engano. Uma simples fotografia autografada de Rosa Parks, a mulher que desencadeou o boicote às empresas de ônibus de Montgomery e lançou à fama um pastor de 29 anos chamado Martin Luther King, vale hoje US$ 2.500. O manuscrito encalhado de Taney sai por US$ 1.000.
O trabalho dos sábios incineradores está com o presidente do Senado, José Sarney, cuidadoso curador de sua própria memória e membro da Academia Brasileira de Letras. Como presidente da República, autorizou a queima dos arquivos da Justiça do Trabalho. Com isso, mutilou a memória das reclamações de trabalhadores, de acordos, greves e negociações coletivas.
A piromania é fruto do desinteresse, não da fatalidade.
O STF, os Tribunais de Justiça de São Paulo, do Rio de Janeiro e de Rondônia, bem como o TRT de Rio Grande do Sul, acertaram-se com arquivos públicos e universidades para prevenir o incêndio.
Há mais de uma década, a desembargadora Magda Biavaschi batalha na defesa dos arquivos trabalhistas, mas pouco conseguiu. Lula ainda tem mandato suficiente para agir em relação à fogueira trabalhista e para alertar sua bancada na defesa dos arquivos cíveis. Milhares de processos estimulados pelas lideranças sindicais dos anos 70, quando ele morava no andar de baixo, já viraram cinzas.

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